2017-08-24 15:44:00

Género e cinema em África - um tema sempre a peito à Irmã Dominic Dipio


“A dignidade da mulher em África está ainda por promover tanto na Igreja como na sociedade”, frisavam os bispos nas vésperas do II Sínodo para a África. E recordavam que  a mulher continua a ser a ser vitima de diversas injustiças, “exigindo algumas delas uma vigilância particular”: feitiçaria, mutilação sexual, inferioridade social, domínio do homem sobre a mulher, poligamia, alguns ritos de viuvez, salários injustos e nem sempre garantidos, etc.

Mas, mudar a situação da mulher na sociedade tem também a ver com a comunicação social, com a imagem que os meios de comunicação veiculam da mulher. O cinema, pelas suas características e completude desempenha nisto um papel primordial. Porém, as análises neste sentido, sobretudo no que toca ao cinema africano, são poucas.

Uma delas é um trabalho feito em 2002 pela Irmã Dominic Dipio (ugandesa) e que conserva ainda toda a sua actualidade. Por isso, achamos oportuno repercorrê-la na emissão "África em Clave feminina: música e arte" desta  dia a, 24 de agosto de 2017.  Trata-se da sua Tese de Doutoramento em Ciências Sociais e Comunicação, defendida na Universidade Pontíficia Gregoriana de Roma; tese intitulada  “A representação da mulher e das mudanças dos papeis de género no cinema africano: uma leitura crítica à luz das teorias feministas”.

Nesse seu trabalho de Doutoramento, a irmã Dominic analisou treze filmes dos maiores cineastas africanos: desde o senegalês Sembene Ousmane, considerado o pai do cinema africano, aos malianos Soulemane Cissé e Cheick Oumar Sissoko, ao mauritano Med Hondo, ao Burkina-Be Idrissa Ouedraogo, etc. Um trabalho em que Dominic sublinha antes de mais que o cinema da África, nascido nos anos 60, tem sido essencialmente um cinema comprometido com a educação e a consciencialização dos africanos quanto aos problemas que os rodeiam, tentando provocar alguma mudança para o melhor. Mas, quando se trata de representar a mulher e o seu papel na sociedade, esta bela intenção dos cineastas desmorona-se. Qual será então a razão disto?

  “Bem, penso que a questão é que há problemas maiores em África e, então, os cineastas tendem a olhar para esses problemas que lhes parecem mais abrangentes do que o problema da posição da mulher na sociedade. Consideram que a mulher é parte da sociedade, vive na família, e os temas que lhe dizem respeito não parecem ser tão urgentes se comparados com outros problemas sociais como os problemas ligados às classes sociais, à questão dos ricos e dos pobres. Os realizadores preferem falar de questões de classe social e a questão da mulher é incluída nisto; a sua identidade como mulher fica perdida no meio disto tudo, porque considerado um problema menor. É como se eles fizessem este raciocínio: as mulheres fazem parte da sociedade, nós não as maltratamos, elas são as nossas esposas, as nossas irmãs... Portanto, aparentemente há uma relação que não é uma confrontação. É como se se tratasse de qualquer coisa com a qual as pessoas podem coexistir, por isso o problema da mulher não é considerado um problema urgente”.

       Mas, as mulheres não vêem as coisas deste modo. Tanto é que na Dominic analisou esses filmes à luz das teorias feministas existentes hoje no mundo. Em que consiste exactamente esta visão, e qual a posição do feminismo africano neste sentido

       “Sim, as mulheres ou aquelas que adoptam uma visão critica feminina consideram que há um problema que deve ser trazido ao de cima, coisa que os realizadores de cinema não fazem ou fazem de maneira imperfeita. Por isso, a tarefa dessas feministas é ajudar a evidenciar problemas que doutra forma ficariam escondidas se vistas numa outra óptica dos cineastas. No que toca aos filmes, o maior problema que elas vêem é que as mulheres ficam prisioneiras da tradição que é muito opressiva em relação a elas. E dado que essas tradições reflectem o patriarcado sobre o qual assenta a sociedade, e como os homens estão mais bem posicionados nesse sistema, não lhes interessa muito mudar a situação. Os realizadores de alguns dos filmes que analisamos enfrentam estes problemas, apresentam mulheres que lutam contra instituições opressivas em relação a elas, mas essas figuras femininas no filme não encontram uma via de saída para os seus problemas. Antes pelo contrário, são punidas ou levadas a fugir da comunidade -  e isto deixa sim nas espectadoras um espírito de desafio, mas ao mesmo tempo perguntam-se: se eu fizesse isto, o que é que me aconteceria? É claro que se trata de um filme, mas os filmes têm uma influência sobre as pessoas, sobre a maneira como reagem a determinadas situações – É esta a razão por que aqueles que adoptam o feminismo crítico gostariam de ver a questão feminina apresentada doutra maneira, por forma a provocar uma mudança positiva nos homens e nas mulheres”.

        “Gostaria, contudo, de esclarecer uma coisa em relação à visão do feminismo crítico, porque o termo feminismo é visto em África com uma determinada conotação. Muitas feministas africanas, se assim podemos dizer, querem redefinir este termo diferenciando-o do feminismo do mundo ocidental que é contra a família, ou então daquele feminismo extremista ou coisa assim. Elas, as africanas, preferem definir-se humanistas. Querem ver as mulheres realizadas como mulheres dentro da família e sem nenhum sentimento de inferioridade ou de superioridade em relação ao homem. Sublinham, pelo contrário, a complementaridade  da mulher e do homem a diversos níveis da sociedade. O que significa que ser mulher não é ser inferior ao homem, ou algo de negativo. Por isso, as mulheres devem ter direito à educação, devem valorizar-se como mulheres, isto é muito importante!

 E foi esta a posição das mulheres africanas que Dominic teve mais em conta na sua análise dos filmes. Segundo revelou essa análise, os cineastas oferecem nos seus filmes praticamente três tipos de mulheres: as mulheres idosas tidas em grande consideração pela sociedade, muitas vezes até mais do que os homens, mas que não desafiam a ordem patriarcal estabelecida, as mulheres jovens que querem mudar muita coisas, mas os cineastas não lhes dão no contexto dos filmes, a oportunidade de levar até às últimas consequências essa posição e, finalmente as meninas pre-adolescentes que veiculam ideias e comportamentos revolucionários, mas que pela sua jovem idade parecem inofensivas e não são, portanto, tomadas seriamente em consideração. Uma posição que Dominic considera de comodidade para os cineastas. Caso então para se perguntar se os cineastas africanos serão capazes de dar um passo em frente na representação da mulher no cinema,  ou isto só poderá de cineastas mulheres?

Na realidade acho que há qualquer coisa na estrutura social que faz com seja difícil para os homens ultrapassar este bloqueio. E talvez não tenham bem consciência disto. É qualquer coisa que forma as suas consciências desde criança e que os leva a ver as coisas desta maneira. Os filmes que analisei vão dos anos 70 a meados dos anos 90 e entre os realizadores dessa época há alguns que são considerados defensores da causa feminina, como por ex. o senegalês Sembene Ousmane, Cheik Oumar Cissoko, Souleimane Cissé (ambos do Mali), pessoas consideradas revolucionárias na maneira de apresentar a mulher nos filmes. E a intenção deles é, de facto apresentar a mulher numa óptica positiva. Tomemos por ex. o filme Xala de Sembene Ousmane: há uma mulher revolucionária que aparece no início do filme desafiando o pai que decidiu arranjar uma terceira mulher e ele chega até a dar-lhe uma bofetada, mas o realizador  não conseguiu levar até ao fim do filme essa figura feminina revolucionária, acabando por dar mais atenção aos trabalhadores, portanto ao problema das classes sociais, mais do que ao problema das mulheres. Portanto, no fim, é a estrutura social de classe que é toma a dianteira. A intenção dos realizadores é boa, mas não chegam a concretizá-la até ao fim”.

 Mas, pode-se continuar a esperar alguma coisa positiva dos realizadores africanos quanto a uma melhor apresentação da mulher nos filmes?

 “Sim, podemos continuar a esperar. Não quero pô-los completamente de lado. Podemos continuar a esperar algo de melhor. Actualmente há muitos filmes progressivos e o trabalhos dos críticos de cinema africano levará certamente a um melhoramento neste aspecto. Há filmes muito progressivos, como por ex. Nha Fala de Flora Gomes, um realizador da Guiné-Bissau. Esse filme é um filme musical, um género novo no cinema africano. A mulher é a figura central e é apresentada de uma maneira muita liberatória no sentido de que ela ultrapassa os tabus, canta e o seu cântico liberta toda a comunidade – o filme é uma comédia, mas eu acho que é um filme muito bem sucedido porque apresenta uma mulher que desafia os tabus sociais de maneira positiva. Também Sembène Ousmane no seu mais recente filme Faat-Kiné  vai nesta direcção. Diria, portanto, que ele pode fazer ainda mais”.

Sembène Ousmane que faleceu em 2007, dedicou o seu último filme, Moolaadé, à questão da mutilação genital femininas, tomando posição contrária a esta prática que põe em perigo e a saúde física e psiquíca, assim como a dignidade da mulher. O filme ganhou o maior prémio no festival de Cannes na secção “un certain regard” (Um certo olhar).

       Na sua tese, e ainda à luz das teorias feministas, a irmã Dominic Dipio sublinha que as feministas contestam o facto de a mulher ser representada no cinema dos países desenvolvidos essencialmente como atracção sexual. No cinema africano não há este problema, mas a estrutura patriarcal que rege a maior parte das sociedades africanas acaba por limitar as possibilidades de a mulher evoluir socialmente. Para que modelo devem então, olhar os cineastas africanos na representação da mulher no cinema, uma vez que se olham para a tradição é o patriarcado, e se olham para o mundo ocidental considerado por muitos um modelo de desenvolvimento, é a mulher objecto de prazer sexual?

   “Muito bem, antes de mais penso que o cineasta deve ter imaginação. Enquanto realizador ele é um artista, tem imaginação, e não lida só com o mundo real. Ele tenta criar um mundo diferente propondo determinadas ideias. Por isso, ele deve tomar posição no filme que realiza, e essa posição é ditada não só pela realidade das coisas, mas também pela sua imaginação, pela sua criatividade. Esta, pode ser, portanto, uma fonte de inspiração. Mas, não é a única, pois que embora a tradição seja patriarcal e tanto ela como o mundo ocidental sejam de algum modo opressiva para a mulher, há contudo, na tradição africana figuras femininas importantes nas quais um cineasta pode inspirar-se para criar algo de diferente. Isto é, portanto uma realidade e uma esperança, sobretudo tendo em conta que a arte cinematográfica não é apenas realidade, transcende a realidade oferecendo um ideal de plenitude ao qual podemos aspirar”.

Nas sociedades africanas, há também a organização matrilinear da sociedade, chamada muitas vezes matriarcado. Poderá ser este um modelo plausível de representação da mulher para os cineastas?

 “Sim, de certo modo. Sim e não, porque nos sistemas matriarcais a mulher tem um papel significativo, mas é muito simbólico, pode-se ter uma rainha-mãe... as mulher desempenham um papel-chave, mas esses papeis são simbólicos, não se trata de papeis práticos de administração política. O poder real fica nas mãos dos homens mesmo nesse tipo de estrutura”.

Embora a situação esteja a mudar, a Igreja tem sido, geralmente, muito cauta em relação aos meios de comunicação social e o cinema em particular. Qual será a relação Igreja-cinema em África?

 “A questão é que tipo de filme se vê. Penso que a Igreja não deveria recear quanto ao uso de filmes como instrumento de educação. Eu própria gostaria de fazer uso de filmes na educação da minha gente, quando voltar para o Uganda. E espero que os bispos me apoiem na obtenção de filmes para esse fim, porque há filmes muito bons, ricos de significado que podem ser usados para educar pessoas que não sabem ler, por ex. mas que podem ver imagens e compreender as coisas. Na minha opinião isto é uma chance para a Igreja. Tudo está na selecção de filmes que se faz.”

Mas será que a Igreja em África tem medo do cinema

 “Talvez a Igreja em África não tenha tanto medo em relação o cinema como a Igreja na Europa, porque o cinema não é tão difuso em África. Está ainda no início. Mas sei que as pessoas querem ver filmes da África, e muitos deles têm mensagens importantes. Tal como acontece nas histórias tradicionais, também esses filmes têm sempre uma lição a transmitir. Por isso, penso que os filmes têm uma função importante a desempenhar nesta época em que já não se pode sentar debaixo de uma árvore a ouvir histórias como antigamente. O que é preciso é ver e discutir. Muitas vezes falta a inspiração à nossa gente e esses filmes constituem uma ocasião de reflexão sobre muitas coisas”.

A Irmã Dominic Dipio, da Congregação Maria Mãe da Igreja, é actualmente professora na Universidade estatal de Makere, no Uganda, onde já ensinava antes de vir para Roma fazer o doutoramento em Ciências Sociais e Comunicação. Um trabalho que lhe permite estar em contacto com muitas leigas. Será que tem problemas comuns que podem enfrentar juntas enquanto mulheres?

  “Sim, como mulher na Igreja temos outras estruturas que nos tornam a vida um bocado difícil. Eu gostaria que houvesse mais transparência, que houvesse mais mulheres em determinados sectores da Igreja que são fortemente masculinas, por forma a tornar as coisas mais fecundas, mais suaves. Penso que tal como a sociedade, também a Igreja sofre muito com a exclusão das mulheres, porque a dimensão da complementaridade deve existir a todos os níveis tanto na Igreja como na família, e na sociedade em geral. Por isso não deveria haver essa desconfiança no tratamento entre uns e outros. São coisas que podemos tratar com as mulheres leigas, na medida em que de certo modo temos os mesmos problemas”.

Em 2014 a Irmã Dominic publicou o livro "Gender Terrains in African Cinema

(DA)








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