2017-08-10 16:26:00

"Uma Carta tão Longa" - um clássico da literatura feminina africana


Na nossa emissão "África em Clave Feminina: Música e Arte" desta quinta-feira, 10 de Agosto de 2017, falamos da arte literária.

Rebuscando nos nossos arquivos encontramos uma entrevista sobre a obra da escritora senegalesa Mariama Bâ, falecida a 16 de Agosto de 1981 com apenas 52 anos de idade. Ela faleceu pouco antes da publicação da sua segunda obra “Un Chant Ecarlate” (Um Cântico Escarlate). Mas a sua primeira e mais famosa obra é “Une si Longue Lettre”  (Uma Carta tão Longa) publicada em 1979 e que foi traduzida para 16 línguas. Obra de que nos falou em 2006 na referida entrevista, o seu compatriota, Medoune Guèye, crítico e professor de Estudos Francófonos no Instituto Politécnico e Universidade do Estado da Virgínia, nos Estados Unidos. Ele é autor, entre outros de um artigo sobre “Questões femininas nas obras de Mariama Bâ e Aminata Sou Fall”.

Embora Mariama Bâ não seja a primeira romancista da África dita francófona, ela é muito conhecida no mundo da literatura feminina africana. Será pela sua obra, pelo seu estilo, pelos temas que trata, ou simplesmente por ter sido uma das primeiras mulheres a escrer em África? Medoune Guèye responde a estas e outras questões relacionadas com esta escritora que marcou os primóridos da literatura feminina africana em África. 

Oiça tudo acompanhado aqui da música do instrumento Kora, tocada também, coisa rara, por uma mulher: a senegalesa, Sarah Carrère. 

“Feminisme, ce n’est pas une ideologie uniquement feminine. Le feminisme est une ideologie humaine…” .

          “O feminismo não é uma ideologia unicamente feminina. O feminismo é uma ideologia humana”. Diz Medoune Guéye, senegalês, professor associado de Estudos Francófonos no Instituto Politécnico e Universidade do Estado da Virgínia nos Estados Unidos. Ele é autor, entre outros, de um artigo sobre “Questões femininas nas obras de Mariama Bâ e Aminata Sow Fall”. E foi a ele que recorremos para saber um pouco mais sobre a obra de Mariama Bâ, falecida a 16 de Agosto de 1981. Mariama Ba morreu com apenas 52 anos de idade, deixando duas obras, a primeira das quais muito célebre: “Une si Longue Lettre” (Uma Longa Carta) publicada em 1979 e traduzida para 16 línguas.

         Embora Mariama Bâ não seja a primeira romancista da África francófona, ela é muito conhecida no mundo da literatura feminina africana. Será pela  sua obra, pelo seu estilo, pelos temas que trata, ou simplesmente por ter sido uma das primeiras mulheres a escrever em África? Medoune Guèye…

         C’EST TOUT ÇA ….

         “É tudo isto ao mesmo tempo. Antes de mais é necessário compreender o contexto histórico em que Mariama Bâ escreveu e toda a primeira geração de mulheres escritores da África em geral, e do Senegal, em particular. Foi, com efeito, nos anos 70 que as mulheres começam a escrever em África. E isto é importante, porque constitui um testemunho sobretudo dos sofrimentos da mulher. E no que toca à obra de Mariama Bâ, trata-se de um retrato do sofrimento da mulher na vida de casal. No seu primeiro romance “Une si longue lettre”, Mariama Bâ revela a injustiça social que caracteriza a vida da mulher em África, no Senegal, tratando sobretudo a poligamia, mas também a hipocrisia social da mulher. Trata-se duma representação alargada que põe em relevo todos os elementos que contribuem para a exploração da mulher e para a sua situação de subalterna: a exploração da mulher pelo sociedade: pelo homem, pela sogra, pela a co-esposa, etc.. Ela mostra também, de certo modo, a evolução da tomada de consciência do estatuto subalterno da mulher. Faz isto apresentando diversos tipos de mulheres no seu esforço para se libertar, para conseguir os seus objectivos e mesmo nas suas falências. Com efeito, em “Une si Longue Lettre” ela faz a representação de três tipos de mulheres (a mulher submissa, a mulher indecisa e a mulher revoltada). É um retrato que corresponde de certo modo a diversas gerações e, nisto, creio que ela conseguiu elucidar a dinâmica da alienação da mulher e a necessidade da sua emancipação. Acho que é isto que faz da sua obra uma obra importante”.****

         No seu artigo “A questão feminina nas obras de Mariama  Bâ e Aminata Sow Fall”, duas autoras que ele considera complementares, Medoune Guèye afasta as críticas, segundo as quais essas duas romancistas senegalesas ter-se-iam inspirado no feminismo ocidental. É que – justifica – elas têm uma dinâmica completamente diferente, através da qual põem em evidência os mecanismos que mantêm a mulher africana em situação de subalternidade. Trata-se, portanto, dum feminismo diferente do do mundo ocidental?

        OUI, OUI….

         “Sim, sim, sabe o feminismo se manifesta sobretudo através de uma tomada de consciência e de interrogações sobre o determinismo sócio-cultural que entrava a emancipação da mulher, mantendo-a num estado de subalternidade. Portanto, que seja africano ou europeu, o feminismo é sempre feminismo! Mas, em relação a essas  escritoras, o que eu queria demonstrar é que não se pode julgar o feminismo das africanas situando-as num quadro que não toma em consideração a realidade sócio-cultural da África.”

         Por outro lado, é preciso ter em conta que elas próprias não se auto-definem feministas, não é?

         EXACTEMENT, ELLE NE PASSE …

         “Exactamente, elas não se definem feministas. Definem-se escritoras que querem revelar a dinâmica social em jogo nas nossas sociedades. Sabe, O papel do escritor em África é muito semelhante ao do tradicional contador de estórias, pois que a literatura trás sempre alguma lição”.

         De forma geral a crítica foi muito positiva em relação à obra de Mariam Ba. Mas houve também, sobretudo, críticos homens (e isto acontece ainda hoje em relação a algumas escritoras africanas) que a consideraram demasiado feminista. O que acha, também como homem?

         IL S’AGIT EN FAITE DE LA LEGITIMITÉ …

         “Na realidade trata-se da legitimidade da expressão das mulheres em África. Sabe, a literatura feminina em África foi precedida de 50 anos pela literatura masculina. É preciso, portanto, compreender que os homens não aceitam essa incursão da mulher pela escrita. É que tanto a literatura feminina como a masculina se apoiam em estratégias políticas. E os homens que dizem que essas escritoras são demasiado feministas, estão simplesmente a tentar salvaguardar a sua legitimidade, pois que durante meio século os homens foram os únicos a produzir obras literárias, a representar, através das suas obras, toda a sociedade”.

         ALLORS, TROP FEMINISTE, PEU FEMINISTE…

         “Então, demasiado feminista, pouco feminista…!? eu não acho que a questão seja esta. É sobretudo a procura de uma certa legitimidade que levou as mulheres africanas a tomar a palavra, a escrever. E esta tomada da palavra passou, no quadro da primeira geração de escritoras africanas, por estratégias que se revelaram eficazes: escrever de forma a não chocar demasiado a sociedade. A própria Mariama Bâ afirmou, num artigo, que “em todas as culturas a mulher que reivindica ou que protesta é mal vista. Se a palavra que esvanece marginaliza, como será julgada a mulher que ousa fixar para a eternidade o seu pensamento?!”. Isto para dizer que tomar a palavra, escrever não foi fácil para a mulher, porque a hegemonia do homem estava sempre ali, vigilante. Era, portanto, preciso encontrar estratégias eficazes, satisfazer determinados critérios, apoiar-se em noções de legitimidade que passava antes de mais por um discurso sobre a mulher; um discurso que tinha em conta o campo literário parisiense porque não literatura africana que se imponha fora do campo literário parisiense que é o campo que legitima tudo. Depois havia o campo literário nacional. E aí era preciso um discurso que não contrastasse demasiado com a realidade social africana. E na obra de Mariama Bâ encontramos o discurso sobre o Islão, aquilo a que eu chamo de discurso islamista, um discurso que se apoia indirectamente nos preceitos divinos da igualdade. Porque se ler “Une si Longe Lettre” de Mariama Bâ verá que ela fala constantemente do Islão. Creio que ela faz isto no intento de confortar os homens na sua percepção falo-centrica (machista) da sociedade. É um discurso duplo, porque com astúcia ela legitima o seu discurso”.

            Esta estratégia de legitimar o próprio discurso literário baseando-se em pilares sociais, mas fazendo ao mesmo tempo uma fuga em frente, têm-se verificado em várias partes do mundo, não só em África, refere Medoune Guèye. Mas por causa disso, alguns críticos acham que as escritoras africanas se auto-censuram, não dizem tudo. E a própria Mariama Bâ chegou a afirmar, numa entrevista, que não se teria casado com alguém que não fosse da sua casta, porque os seus, a sociedade não o aceitaria, mas que se uma sua filha o quisesse fazer ela não se oporia. Acha, Medoune Guèye, que Mariama Ba se auto-censurou na sua obra, que poderia ter ido mais longe?

         JE NE SAIS PAS TELLEMENT….

         “Não sei bem como responder a esta pergunta. Acho, contudo, que a obra de Mariama Bâ contém todos os elementos constitutivos daquilo que é designado como  romance feminino africano nos anos 80. E todas as mulheres africanas que escreveram depois dela retomaram temas que permeiam as suas duas obras, tanto “Une si Longhe Lettre” como “Un Chant Écarlate”. Se há hesitações, se há pessoas que consideram que ela não disse tudo… acho que foi apenas porque era necessário encontrar uma estratégia que permitisse à sua obra ser aceite”.

****

         Medoune Guèye não tem, portanto, dúvidas de que Mariama Bâ constitui um marco importante na literatura feminina africana. (Oui, oui, absolument). Era os anos 70, a era da máquina de escrever, como definiu esse período uma outra famosa escritora senegalesa da época, Aminata Sow Fall, na sua obra “Do Pilão à Máquina de Escrever”  ("Du Pilon à la Machine à Ecrire”, Aminata Sow Fall parte de l’ère du Pilon”)… As obras dessa primeira geração de escritora vai no sentido de uma literatura autobiográfica, de reportagem, de documentários sobre a condição feminina. Mas com Mariama Bâ dá-se uma passo a mais em frente …

         AVEC MARIAMA BA NOUS AVONS …

         “Com Mariama Bâ temos pela primeira vez uma representação da vida, da condição da mulher em África: a desigualdade entre os sexos, a poligamia… tudo isto se encontra de certo modo em filigrana na obra de Mariama Bâ. Ela deu início, com efeito, a uma revolução literária que pôs o problema da mulher no romance.

         E o que há depois dela? A literatura feminina africana (francófona neste caso) avançou… Alguns perguntam-se mesmo se ela escreveria da mesma forma se estivesse ainda viva?

         LA REPONSE EST NON….

         “A resposta é não. A condição da mulher mudou, de certo modo. Já não há um olhar específico da literatura apensa sobre a desigualdade. A nova geração de escritoras aborda a literatura enquanto artistas. São mulheres, são escritoras que se exprimem em pé de igualdade com o homen, escritoras que não são absolutamente afectadas pelos problemas que a primeira geração tinha pela frente. Elas tratam dos mais variados temas: a África, a juventude, o sofrimento, a procura de identidade, a SIDA, o desemprego, etc. Fizeram, portanto, mexer, digamos assim, aquilo que eram as normas. Enfrentam todos os domínios literários que eram considerados bastiões privilegiados dos homens. Creio que Aminata Sow Fall é o exemplo a tomar, porque ela publicou a sua primeira obra antes de Mariama Bâ. Ela continua ainda hoje a escrever. E vê-se através das suas obras que a resposta à pergunta - se Mariama Bâ escreveria da mesma forma se estivesse viva - é não. Mariama Ba não continuaria a fazer uma literatura representativa unicamente dos problemas femininos. Teria certamente alargado a sua temática a todos os problemas que vemos na literatura de hoje.

         Aliás, há quem considere que escritoras de hoje como a camarunesa Werewere Liking, avançaram de tal modo no tratamento de temas antes tabu, que a sua mais recente obra, foi definida por alguns críticos (sempre homens) quase pornográfica, pela maneira como trás ao de cima aspectos ligados ao corpo da mulher..

         IL FALLAIT TROUVER DES SUJETS….

         “Era preciso encontrar sujeitos que não chocassem demasiado. Se hoje temos escritoras como Werewere Liking,  Kalix Beyala, ou Ken Bugul (do Senegal) é simplesmente porque houve a geração de Mariama Bâ que desbravou o terreno, fazendo aceitar a literatura feminina”

          Numa entrevista à revista “Amina” em 1979, depois da publicação da sua primeira obra “Une si Longue Lettre”, Mariama Bâ, atribuía as culpas maiores da crise familiar no Senegal aos homens. E ainda hoje, Werewere Liking fala de “misovire”, ou seja a mulher que circundada por homens que não valem nada acaba ela própria por se tornar humanamente miserável. É preciso salvar o homem africano, Medoune Guèye?

         LE PROBLEME EST UN PROBLEME MONDIAL….

         “O problema é um problema mundial. É a sociedade que é feita de modo a que haja uma hegemonia do sexo masculino. Mas creio que não se trata duma situação específica à África, ou aos homens africanos. É uma situação específica do ser  humano. São os homens que dirigem o mundo e fazem de tudo para conservar essa hegemonia.”

         FEMINISME, CE N’EST PAS UNE IDEOLOGIA …

         “Feminismo não é uma ideologia unicamente feminina. O feminismo é uma ideologia humana. Todos os homens e  mulheres de bom senso, que querem uma sociedade justa, têm de ser feministas, porque  feminismo é combater a desigualdade, ponto final. E formas de desigualdade existem muitas no mundo. O problema é que se estabelecem prioridades. A questão é de procurar fazer face a todas as desigualdades, quer se trate de desigualdades entre o homem e a mulher, entre as classes sociais num mesmo país, entre países pobres e países ricos, entre pretos e brancos, etc. Devemos aspirar a uma maior justiça neste mundo.

         Então, aos seus colegas diz para não terem medo do feminismo, e às feministas para serem , é isto?

         OUI, OUI, C’EST….

         “ Sim, sim, aliás, é por isso que dizia que considero a obra de Mariama Bâ muito importante, como de resto também a de Aminata Sow Fall. Há bocado dizia que essas escritoras evitam definir-se feministas, simplesmente porque o que elas queriam era a justiça social; queriam participar na resolução, no debate sobre os problemas da nossa sociedade. Porque a era do “olho por olho, dente por dente” já a ultrapassamos, ehn!"

         LES PROBLEMES DE LA FEMME…

         “Os problemas da mulher são os problemas dos homens. Dizia que em “Une si Longue Lettre” Mariama Bâ mostra a hipocrisia da mulher, quer dizer ela mostra que se os homens africanos continuam a explorar a mulher é também porque há certas mulheres que participam nessa exploração. O problema é, portanto, a procura da justiça em toda a sociedade. A questão não é  ter medo do feminismo. Trata-se simplesmente de querer estabelecer uma sociedade igualitária e justa para todos.”

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         Considerações do crítico e  professor de literatura francófona nos Estados Unidos, Medoune Guèye, a propósito da obra da escritora  senegalesa Mariama Bâ, falecida a 16 de Agosto de 1981, com apenas 52 anos de idade. Ela deixou duas obras: “Une si Longue Lettre” publicada em 1979 e “Un Chant Ecarlate” que marcaram a primeira fase da literatura feminina africana (francófona neste caso), uma literatura que, como, noutras partes do mundo, foi inicialmente uma literatura autobiográfica e de um certo de acomodamento às normas estabelecidas, para devagar, devagar desbravar o terreno e garantir à mulher o acesso à escrita literária. Literatura que, recordamos era até então (anos 70) dominada por cerca de 50 anos de escritura masculina.

         Mariama Bâ era casada e mãe de 9 filhos. Mas acabou por se divorciar do marido. Quando jovem ela foi educada pelos avós segundo as tradições do país e do Islão. Mas o pai, político, clarividente, fê-la estudar. E ela fez o liceu numa das mais importantes escolas de Dakar, onde se diplomou como as melhores notas de toda a escola.

(DA/PA)

         








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