2017-07-21 19:36:00

Veronique Beya Mputu, mulher forte no filme "Félicité" e na vida real


Teve lugar de 14 a 16 de Julho, na Casa do Cinema num dos grandes jardins de Roma – Vila Borghese – a 3ª edição de Romafrica Film Festival. Três dias de filmes, debates e colóquios com realizadores para trazer um pouco mais de África a Roma através da sétima arte. A ideia da criação deste mini-festival  - que se espera venha a crescer – nasceu da Associação cultural  “Outubro Africano”, cujo presidente, Cleophas Adrien Dioma, do Burkina-Faso, acabou por criar uma outra associação só para a realização do festival que conta agora com diversos colaboradores e patrocinadores.

De entre os filmes deste ano destacava-se “Félicité” do franco-senegalês e bissau-guineense, Alain Gomis, filme que venceu este ano o “Urso de Prata” no Festival de Berlim, e grande prémio do FESPACO, Festival Panafricano de Cinema e Televisão, em Ougadougou, Burkina-Faso.

Ambientado na RDC, mais precisamente em Kinshasa, Félicité, é o nome de uma mulher que cantava num bar para ganhar a vida, e, vivia mais ou menos feliz, até que um dia o seu filho de 14 anos teve um acidente rodoviário e precisava de ser operado. A mãe não tem dinheiro e então coneça para ela um calvário para encontrar o dinheiro necessário nessa capital cheia de potencialidades - como os grupos musicais, “Kasai All Stars” e a “Orquestra Sinfónica Kimbanguista”, cujas músicas são parte do filme, e que vamos ouvir nesta emissão - mas também de problemas, de violência, de descalabro, de dificuldades… Quem personifica Félicité nesse filme que é ao mesmo tempo real e onírico, é Veronique Shanda Beya Mbuto com a qual conversamos no fim da projecção.

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“Sou Veronique Shanda Beya Mputu... tenho um longo nome. Sou actriz no filme Félicité  de Alain Gomis, desempenhei o papel principal, sou de Kinshasa, sou mãe de uma menina de 5 anos”.

- Afirmou na conferencia de imprensa em Roma que se formou em Economia e Comércio, depois foi cabeleireira, mas sempre sentiu a arte em si. Porque não começou pela arte?

Não comecei pela arte porque a minha família não me apoiou. Era realmente minha intenção dedicar-me à arte, cheguei mesmo a inscrever-me numa escola de teatro, mas a minha irmã mais velha que me cresceu não me permitiu fazer isso, chegou mesmo a humilhar-me durante o curso. Tudo isso está ligado ao facto de o teatro no meu país não dar de que viver; os artistas estão lá, infelizes, quando chegam à velhice não têm nada, começam a mendigar, se estão doentes é o Estado ou os amigos que se encarregam deles. São mendigos. Então a minha irmã não queria que eu acabasse assim,  queria que eu fizesse grandes estudos, em escolas importantes, na verdade queria que eu fosse deputada, ministra ou um quadro algures e não me via absolutamente na arte. Então, foi muito difícil. Ninguém me apoiou, dada a pouca importância da arte no meu país, onde o teatro e o cinema não são muito desenvolvidos”.

- E queria fazer artes dramáticas?

“Sim, mas a minha irmã estava realmente contra. Não queria e como eu era obrigada a fazer o que ela queria, pois que foi ela que me cresceu desde os 4 anos, era quase a minha mãe, eu era obrigada  a me submeter à sua vontade.”

- Era, portanto, apenas por questão económica, não cultural, quer dizer não porque uma mulher na arte não é bem vista?

Isso mesmo, é também isto, ela considerava que sou mulher, não posso, não há futuro na arte. Era isso que ela via. Arte é algo para os homens, eu que fizesse estudos normais, não a arte”.

- E agora, por acaso, como disse, participou na selecção do casting e foi retida como actriz principal no filme Félicité, um filme que está a ter bastante sucesso. Isto mudou alguma coisas… em relação à sua irmã, por exemplo? Como é que ela reagiu a isto?

Quando comecei com o filme, ela não sabia de nada. Eu deixei a casa dela e fui morar em casa do meu irmão que faleceu recentemente (paz à sua alma!). Fui estar na casa dele por algum tempo, fiz o casting, terminei, começamos a rodagem, passamos cinco semanas em Kinshasa e a minha irmã não sabia de nada! Mas como a segunda parte da rodagem devia ser feita no Senegal, então tinha de lhe dizer. Aliás, foi na festa do casamento da sua segunda filha, e aproveitei do ambiente de festa para lhe dizer que nesse dia ia viajar para Dakar e ela respondeu-me: “Não me digas!, o que vais lá fazer?”, etc., e disse-lhe: estou inserida na realização dum filme , tudo isto … e ela…  ah!... (abre a boca) e ficou espantada e tratou-me de feiticeira e disse-me: “tens um coração duro”, e eu respondi-lhe: “aquilo que sou é o que aprendi contigo…. Rimos e ela viu que não havia maldade nenhuma… era uma coisa banal, então disse: “bom, já és crescida, fazes a tua vida, não há problema, mas… não sei o que dizer-te… desejo-te boa sorte”.

- Mas o seu irmão apoiava-lhe?

Sim, ele me apoiava, ele era um militar e não se interessava muito disso. É a minha vida, é a minha vida!…”

- E o facto de ter começado por um filme importante como Félicité, isto encoraja-a, o que representa isto exactamente para uma actriz principiante?

Na verdade, mete um pouco de medo, porque quando se começa com algo que tem muito sucesso assim, e depois se se desce de nível, já se sabe quais podem ser as consequências… Então, é preciso procurar manter o nível, porque se se passa a um filme que não representa nada, de que o público não gosta, que não tem sucesso, choca um pouco.”

- É um desafio!?

- “Sim, é um desafio, porque todos esperam ver-te um grandes filmes, e é um desafio.

- E como pensa enfrentar esse desafio?, está a formar-se em artes dramáticas ou em domínios relacionados com isto?

Acabo realmente de terminar um curso de expressão, vou agora para a segunda parte de um curso de cinema…, há muita coisa a aprender: as expressões faciais, a mímica e tudo mais… e como já estou na formação, já fiz quatro meses e restam-me ainda três… tudo isto faço-o para enfrentar este desafio, porque sei que será… é que todos querem ver-me de novo no ecrã… por isso é realmente necessário uma formação, ser bem formada para enfrentar os desafios e vencer…”

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- No filme vemos uma Félicité forte que faz todo o possível para salvar o próprio filho. Na vida é uma mulher forte, como se vê no filme?

Sim, diria que são os pontos comuns entre Shanda e Félicité.  Sempre lutei pela minha vida, pela minha filha que perdeu o pai quando tinham apenas um ano de idade, sempre me ocupei dela e da minha vida quotidiana… Portanto quando digo que interpretei isso porque é de tal forma real… é real, sempre me ocupei da minha família, dos meus irmãos, porque sou de uma família numerosa, sempre lutei pela sobrevivência, porque sou órfã de pai e mãe e a minha irmã mais velha que me cresceu não tem actualmente quase nada e tenho de dar continuidade ao que ela tem feito, é, portanto, a minha vida quotidiana. Fiz três formações, tudo isso para tentar encontrar a via, faço um pouco de comércio… antes do filme estava no comércio, ia à China comprar roupa para vender… tudo isso para procurar sobreviver…”

- Portanto, para uma mulher, viver dignamente em Kinshasa não é fácil?

Não é nada fácil, não é nada fácil

- Paralelamente à vida da Félicité que se desenrola no ecrã, o realizador do filme, Alain Gomis, apresenta-nos uma cidade, Kinshasa, com muitas potencialidades, mas também uma cidade com muita pobreza, violência e dificuldades. Se tomarmos o caso dos artistas, o que desejaria encontrar nessa cidade para dar um impulso aos artistas, de modo particular mulheres, para poderem desabrochar?

Antes de mais formação, boa, que falta e, do ponto de vista social também, porque se se tem formação, mas não há meios…. É preciso que o Estado nos apoie. O problema é que o Estado não se preocupa com nada; o que não é normal, não é bom. Há muita gente com aspirações, mas acabam por morrer sem realizar os seus sonhos… O Estado tem grande responsabilidade em tudo isso, e deve assumir as suas próprias responsabilidades, construir escolas – isso é primordial – é preciso que as pessoas sejam formadas, há a pobreza, a insegurança… ainda a semana passada quatro artistas foram detidos no Kivu, simplesmente porque fizeram um spot em que denunciavam o massacre em Kananga, Beni… há guerra aqui e acolá, então eles fizeram uma pequena coisa sobre isso e foram detidos e ficaram na prisão algum tempo; depois como se falava tanto, acabaram por libertá-los, mas muitas vezes quando as pessoas são detidas são imediatamente mortas ou feitas desaparecer porque não se quer que se denuncia o mal que existe. Há insegurança, há pessoas que querem falar disso, mas não podem… Por isso, somos limitados de algum modo. O Estado tem, portanto, uma grande responsabilidade da segurança, antes de mais, da criação de escolas, da formação para permitir a todos sentir-se à vontade e desabrochar. Tudo isto faz mal…”.

- Mete medo também?

Claro, que mete medo, porque deter pessoas deste modo só porque fazem o seu trabalho torna-se perigoso. É, por acaso, normal deter pessoas que fazem o seu trabalho? Não! É detida porque denuncia coisas que são reais, verdadeiras, porque há guerra… eu sou do Kananga, há guerra no Kananga, há guerra em Beni, todos sabem disso, mas quando se faz um spot, ou quando se faz um filme sobre isso é razão para se ser detido? Não! Então porque se detêm pessoas? Isto para dizer que não somos livres de fazer o que queremos, de nos exprimir!

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- O filme Félicité tem vários momentos de espiritualidade, de relação da protagonista Félicité, com os antepassados, com a natureza, a floresta, a água, uma relação com o sobrenatural, o transcendente, poder-se-ia dizer. Tudo isto, como que através de sonhos… E acaba-se por saber que quando criança ela tinha “morrido” e voltou, de algum modo à vida, por isso passou a chamar-se Félicité… Que lugar ocupa o sobrenatural, o transcendente na sua vida?

Sei que o sobrenatural existe, que Deus existe… diria que o sonho de Félicité está em relação com a própria vida… Ela tinha “morrido”… Quanto a mim, diria, que o sobrenatural é forte, acredito que existe realmente… Deus existe e ocupa um lugar importante na minha vida”.

-É católica?

Sou cristã e creio que Deus existe, criou o mundo e nós, acredito n’Ele e na sua Palavra”.

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- Fala-se muitas vezes das mulheres brutal e mortalmente violadas na RDC. É originária, como dizia, de uma das zonas mais atingidas pela guerra. Quer dizer algo a propósito disso?

“Na realidade este filme é dedicado às mulheres congolesas do leste, que estejam no Kananga, que são violadas, que são abandonadas à sua triste sorte; é também para as crianças com deficiência física no mundo inteiro. E é também para todos os meus irmãos e irmãs que estão nas mesmas condições que Félicité. É para as mulheres fortes, dignas, orgulhosas que não se deixam levar pelas dificuldades, que não se abaixam, mas lutam até ao fim sem se deixar pisar. O seu coração é templo do Espírito Santo, ela não queria deixar-se marginalizar nessa procura da vida… Ela era digna… Este filme é dedicado a todas as mulheres dignas.”

Quanto às mulheres violadas do Congo, nem quero falar disso, porque de cada vez que falo, isto me faz muito mal, muito, muito mal. Esta situação perdura demasiado… Há crianças que nasceram dessas situações. Violentam-se mesmo bebés. Só imaginar tudo isso, me faz sofrer muito, e nem tenho palavras

Estou, portanto, de coração convosco e a minha luta de hoje é dedicada sempre contra todos esses incivis – aliás, formamos um grupo de mulheres, com o objectivo de combater por todas essas pessoas que estão lá para maltratar pessoas, minimizar as mulheres, desonrá-las; estamos juntos, estamos de coração convosco, estareis sempre no meu pensamento e coração e levaram esta mensagem por todo o lado… nunca vos hei-de abandonar”.

Aliás, estamos a fazer uma pequena coias pelas mulheres violadas do Congo oriental, Kananga, de todo o lado, conhecemos o vosso sofrimento, queremos lançar uma associação de apoio para as mulheres violadas do leste, tenho duas amigas que estão no Canadá, vão vir lá para o fim do mês, e vamos estar juntas para estruturar, ir ver em loco porque não faz sentido estarmos a falar daqui, ir à RDC, ao leste, precisamente para encontrar essas mulheres e ver como fazer porque já escrevemos cartas a organizações para que ajudem, porque nós sozinhas não seria possível… e é esta a luta de hoje e de sempre

Tenho a peito todas as mulheres violadas do mundo , não é só do Congo. Estais no meu coração e no meu pensamento e de cada vez que oiço que há uma mulher que é violada em Kananga… me faz tanto mal, muito mal”.

- Sonhais um Congo melhor?!

Sonhamos um Congo melhor, o Congo de antes, um Congo leal, digno, orgulhoso… perdemos o orgulho e a lealdade por causa de tudo isso. E isto faz-me mal, enerva-me, revolta-me… Queremos o Congo dos ideais de antes. Não queremos mais essa guerra, e é esta a mensagem que lanço ao Governo congolês: por favor, não queremos a guerra em Beni, no Kananga …. Tudo o que queremos é que se tendes problemas… sentai-vos à volta de uma mesa e tratai de os resolver… O Congo perdeu a sua lealdade e orgulho. Não queremos mais isto, não queremos mais isto. Queremos a paz, a paz real, uma paz duradoira para todos os congoleses. Queremos ter de novo o orgulho, a dignidade que nos são devidos. Muito obrigada.”

(DA)








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