2016-11-10 18:38:00

Misericórdia: chave de leitura do pontificado de Francisco (II)


Neste “Sal da Terra, Luz do Mundo”, o padre José Maria Pacheco Gonçalves, nosso ex-colega de redação, propõe a segunda parte da sua reflexão sobre a importância da misericórdia no pontificado do Papa Francisco.

O padre José Maria Pacheco Gonçalves, nosso colega durante muitos anos em Roma na redação de língua portuguesa da Rádio Vaticano, aposentou-se durante o ano de 2014 e rumou à sua diocese do Porto em Portugal.

Foi a partir daí que partilhou connosco uma reflexão sobre a importância da misericórdia no pontificado do Papa Francisco. Tema sobre o qual proferiu uma conferência para os leigos da diocese no Centro de Cultura Católica na cidade do Porto. Eis a segunda parte da sua reflexão:

“É interessante pensar que a Exortação Apostólica programática ‘A alegria do Evangelho’ tem uma forma que se inspira, estou absolutamente convencido disso, numa Exortação apostólica de Paulo VI publicada em 1975 que é a ‘Evangelii Nuntiandi’. E que era precisamente ‘sobre a evangelização do mundo contemporâneo’, dizia Paulo VI. E esta Exortação Apostólica ‘A alegria do Evangelho’ é sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. Aliás, é muito interessante pensar que Paulo VI tinha publicado também em 1975 uma outra Exortação Apostólica sobre a alegria. As primeiras palavras eram: gaudet in domino, alegrai-vos no Senhor. “

“E o Papa Francisco vai associar estas duas ideias a alegria e a missão, e o grande impulso e dinamismo deste texto é, precisamente, dizer que é uma alegria tão grande sentirmo-nos perdoados por Deus, percebermos a sua misericórdia, vivermos essa experiência permanente dessa reconciliação profunda e perceber que é isso a salvação do mundo, que nós não temos direito de conservar isso para nós e temos que o ir anunciar. E o ponto de partida da Exortação é partir desta experiência pessoal e comunitária de que nós somos salvos. A comunidade evangelizadora, diz o Papa, vive um desejo inesgotável de oferecer misericórdia, precisamente porque experimentou a infinita misericórdia do Pai.”

“Um dos aspetos interessantes da atitude permanente do Papa e que tem que ver com a missão é a questão da proximidade. O elemento da proximidade como uma linha de orientação para a maneira de vivermos como cristãos.”

“Recentemente, em Cracóvia num encontro com os bispos polacos, o Papa não tinha preparado nenhum discurso e respondeu às perguntas que alguns bispos lhe foram fazendo. E um perguntou: ‘O que é que acha que nós podemos fazer perante uma sociedade que cada vez mais se afasta, uma sociedade secularizada que se torna indiferente em relação ao Evangelho?’ E o Papa encolheu os ombros e disse: ‘Temos que ver a recomendação que faz o Evangelho: a proximidade’. E disse: ‘Todos nós bispos, padres, consagrados, leigos convictos, temos que estar perto do Povo de Deus.’ E disse uma expressão que é impressionante: ‘Sem proximidade existe apenas palavra sem carne’. E disse: ‘No fundo é o Evangelho, é tocar, as obras de misericórdia corporais, espirituais, é a vida de Jesus’. E lembrou: ‘Lembram-se o que aconteceu quando Jesus se comoveu às portas da cidade de Naim? Ele foi e tocou no caixão, enquanto dizia àquela mãe em lágrimas: não chores, não chores’. E repetiu: ‘proximidade, tocar a carne sofredora de Cristo. São as obras de misericórdia: tocar, ensinar, consolar, perder tempo…’ “

“É interessante ver os critérios que o Papa tem sublinhado para a escolha dos candidatos ao episcopado. E fez isso desde o princípio em maio de 2013, dois meses depois da eleição, ele teve um primeiro encontro com os núncios apostólicos e foi muito interessante o que disse, e disse com muita firmeza: era importante que os candidatos não tivessem psicologia de príncipes e que estivessem verdadeiramente preocupados com ser do povo.”

“É interessante que na Exortação Apostólica ‘A alegria do Evangelho’, o Papa insiste que a missão é uma paixão, no fundo é a paixão pela difusão da Palavra de Deus da salvação em Cristo. Mas disse: ‘ a missão é ao mesmo tempo a paixão pelo Povo’. E disse: se nós não estivermos perto das pessoas, se não tivermos a paixão, o amor, a caridade pastoral de fazer nossas essas situações de sofrimento, de fragilidade, não conseguimos, não podemos ser pastores.”

“Uma outra coisa de que me estou a lembrar e que também pareceu exemplar, foi um encontro em Santa Cruz na Bolívia em 2015 com padres, religiosos, seminaristas, enfim, com gente ligada à pastoral da Igreja: o Papa fez uma espécie de lectio divina sobre o episódio do cego Bartimeu e aí o que ele disse em poucas palavras foi muito forte e muito apropriado. Portanto, fez um comentário ao episódio do cego Bartimeu e como faz muitas vezes, segundo o esquema inaciano referiu três palavras: passar, cala-te, coragem levanta-te.”

“Antes de mais, a questão de ‘passar’ de maneira distraída como quem faz zapping sem nunca nos determos olhos nos olhos com as pessoas. Em relação ao ‘cala-te’ disse que os discípulos intimam a Bartimeu ‘cala-te’ tal como é o drama daqueles que pensam que Jesus é apenas para aqueles que consideram aptos, e fez esta observação: ‘No fundo, desprezam o povo fiel de Deus. E sendo assim já não são pastores, são capatazes’. Finalmente, sobre a outra expressão ‘coragem, levanta-te’, observou: ‘Jesus deteve-se perante o clamor de uma pessoa, o que eu posso fazer por ti, pessoalmente. Não faz um sermão, não cataloga, limita-se a fazer uma pergunta e é, assim, que restitui a dignidade que aquela pessoa tinha perdido. E faz a sua inclusão. Em vez de olhar de fora esforça-se por se identificar com os problemas dele, e isso é assumir uma atitude de misericórdia’. E disse com muita veemência: ‘se uma pessoa não se detém, se não padece com, não tem a compaixão divina, não existe uma compaixão que não escute, que não se solidarize com o outro’.”

“Isto faz-me pensar num outro aspeto que também está muito presente neste pontificado e tem tudo que ver com a misericórdia, que é uma atitude muito forte, muito clara, muito frontal em relação aos problemas da economia. Quando o Papa diz numa Exortação Apostólica que é toda sobre a missão que a economia mata e dedica a isso páginas e páginas em dois capítulos, o segundo e o quinto, é porque a misericórdia de que estamos a falar e que o Papa quis propor a toda a Igreja com este Jubileu, não é uma questão de devoção, ou de um intimismo falsamente espiritualista, mas tem que ver com esta atitude que é a atitude de Jesus e que é o anúncio fundamental do Evangelho: que Deus ama efetivamente cada pessoa e que é fundamental que cada pessoa se sinta concretamente amada, acompanhada, estimada, respeitada.”

O padre José Maria Pacheco Gonçalves continuará a refletir sobre a importância da misericórdia no pontificado de Francisco na próxima edição do “Sal da Terra, Luz do Mundo”, aqui na Rádio Vaticano em língua portuguesa.

(RS)








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