2016-10-28 10:21:00

Misericórdia: chave de leitura do pontificado de Francisco (I)


Neste “Sal da Terra, Luz do Mundo”, o padre José Maria Pacheco Gonçalves, nosso ex-colega de redação, faz uma reflexão sobre a importância da misericórdia no pontificado do Papa Francisco.

O padre José Maria Pacheco Gonçalves, nosso colega durante muitos anos em Roma na redação de língua portuguesa da Rádio Vaticano, aposentou-se durante o ano de 2014 e rumou à sua diocese do Porto em Portugal.

Foi a partir daí que partilhou connosco uma reflexão sobre a importância da misericórdia no pontificado do Papa Francisco. Tema sobre o qual proferiu uma conferência para os leigos da diocese no Centro de Cultura Católica na cidade do Porto. Eis uma primeira parte da sua reflexão:

“Estou absolutamente convencido de que a misericórdia é uma boa chave de leitura deste pontificado. Logo a partir das primeiras intervenções do Papa e depois, sobretudo, aquele texto programático tão rico e bastante denso, todo ao estilo do Papa Francisco, que é a Exortação Apostólica “ A alegria do Evangelho”, publicada em novembro de 2013, logo vemos que todos os aspetos da vida da Igreja e da sua relação com o mundo e da sua atitude apostólica, é vista, apresentada e proposta sob este ângulo.

Depois um outro aspeto é repararmos nas atitudes, no estilo, na maneira de se relacionar com as pessoas, na prioridade permanente que dá aos mais simples e aos mais frágeis de todos os pontos de vista. E, depois, um caso muito significativo foi a maneira como o Papa quis, desde o princípio, orientar o processo da reflexão de toda Igreja sobre a problemática da família. Isso desde a consulta, a realização e acompanhamento da primeira assembleia sinodal e da segunda com todas as tensões que isso comportou, com uma certa hostilidade em certa fase. E o Papa através de todo esse processo manteve sempre uma atitude muito clara e muito firme de apelo a uma atitude de abertura e de misericórdia em relação às questões problemáticas, em relação às pessoas que vivem em situações de dificuldade e isso significa uma orientação clara e uma perspetiva do Evangelho que está depois também muito, muito clara num texto que eu considero fundamental e que foi pronunciado num momento crítico.

Foi em fevereiro de 2015, precisamente, entre uma assembleia sinodal e a seguinte num encontro com os cardeais que tinham vindo a Roma para a criação de novos cardeais. E o Papa, nessa altura, a partir da Palavra de Deus do Evangelho daquele dia (não foi buscar nenhum texto para o instrumentalizar); a Palavra de Deus naquele dia de domingo, 15 de fevereiro, VI Domingo do Tempo Comum (Ano B), o Evangelho apresentava Jesus que cura um leproso e para isso o toca infringindo a lei e escandalizando muita gente.

E o Papa nessa altura fez esta observação: Jesus ‘não se envergonha de ter compaixão’, assume o risco de fazer seu o sofrimento da pessoa marginalizada, adota uma atitude concreta que exprime ‘vontade de integração’, não se limitando à preocupação de ‘salvar os sãos’, de ‘proteger os justos’. E fez a observação de que por boas razões houve quem se escandalizasse com este modo de agir de Jesus, de integrar os marginalizados de ‘salvar os que estão fora do acampamento’.

E a partir daí fez uma reflexão sobre a História da Igreja e as atitudes fundamentais que se contrapõem, duas sensibilidades, dizendo claramente qual é a sua. E observou: ‘toda a história da Igreja está marcada por duas atitudes diferentes, duas atitudes que são também duas preocupações que levam ou a ‘marginalizar ou a reintegrar’. E observou, ‘trata-se de duas lógicas de pensamento e de fé: por um lado o medo de perder os salvos e por outro lado o desejo de salvar os perdidos’.

E depois em relação direta com o texto evangélico, fazendo uma espécie de lectio divina, que é precisamente o seu estilo de encontrar na Palavra de Deus uma luz para a vida e também para a pastoral e para a vida da Igreja, disse textualmente assim: ‘O caminho da Igreja, desde o Concílio de Jerusalém em diante, é sempre o de Jesus: o caminho da misericórdia e da integração. Isto não significa subestimar os perigos nem fazer entrar os lobos no rebanho, mas acolher o filho pródigo arrependido; curar com determinação e coragem as feridas do pecado; arregaçar as mangas em vez de ficar a olhar passivamente o sofrimento do mundo. O caminho da Igreja é não condenar eternamente ninguém; derramar a misericórdia de Deus sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero; o caminho da Igreja é precisamente sair do próprio recinto para ir à procura dos afastados nas «periferias»; adotar integralmente a lógica de Deus; seguir o Mestre, que disse: «Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os que estão doentes. Não foram os justos que Eu vim chamar ao arrependimento, mas os pecadores».

E o interessante é que isto é dito num momento de especial tensão e como orientação. De certo modo para mostrar o caminho e para esclarecer quais são as razões de fundo porque ele vinha insistindo tanto nesta linha de misericórdia.

É claro que ao falar de misericórdia muita gente ainda hoje continua a pensar que isso signifique debilidade, menos clareza, na maneira de orientar as coisas. Mas aí, claramente, o Papa tem, desde o princípio do pontificado, sublinhado que a misericórdia, como aliás a ternura, uma outra palavra que ele gosta de usar e que vem associada a este conceito de misericórdia, não é, de maneira nenhuma, debilidade.

E é interessante que na homilia do início do pontificado que foi no dia 19 de março (2013) o Papa limitou-se a fazer uma homilia assim despretensiosa, parecia que não tinha nada de programático, mas tinha. Porque a partir da expressão de S. José como custos, como guardião, ele sublinhou que a missão de S. José tinha sido a de cuidar as pessoas, cuidar carinhosamente, acompanhar. Então disse: ‘Cuidar, guardar, requer bondade, requer ternura. Nos Evangelhos, São José aparece como homem forte, corajoso, trabalhador, mas no íntimo sobressai uma grande ternura, que não é a virtude dos fracos, mas pelo contrário denota fortaleza de ânimo e capacidade de solicitude, de compaixão, de verdadeira abertura ao outro, a capacidade de amar’.

A primeira viagem que ele faz em Itália vai ser a Lampedusa, uma coisa imprevista, decidida de um dia para o outro, organizada numa semana, em tempo recorde e com um mínimo de protocolo. E ele vai lá porque sentiu a necessidade de ir e vai como Jesus que vai ao encontro de quem está num momento de grande sofrimento. E quando lá chega o que ele faz é, antes de mais, em silêncio contemplar aquele mar, deitar um ramo de flores às águas do Mediterrâneo onde pouco mais de uma semana antes tinham morrido centenas de pessoas e perguntar, não era retórica: ‘quem é que chorou por estas pessoas’? E a partir daí usar logo nessa altura uma expressão que depois tantas vezes voltou a usar: a globalização da indiferença. E foi dizendo, ‘mas, nós hoje em dia parece que encolhemos os ombros, achamos que não temos nada que ver com isso, que não são questões para nós. E é todo o contrário.”

O padre José Maria Pacheco Gonçalves continuará a refletir sobre a importância da misericórdia no pontificado de Francisco na próxima edição do “Sal da Terra, Luz do Mundo”, aqui na Rádio Vaticano em língua portuguesa.

(RS)








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