Belo Horizonte (RV) - A sociedade contemporânea é, contraditoriamente, marcada
pelos grandes avanços e flagelos. Guerras fratricidas, fome, catástrofes de todo tipo
configuram uma lista que desenha cenários preocupantes de avassaladora desumanização.
Estas e outras chagas precisam ser duramente enfrentadas com respostas adequadas e
mais velozes sob pena de testemunharmos a derrocada das tradições e narrativas, sustentáculos
do respeito aos princípios fundamentais que tornam possível a vida humana no planeta.
Para enfrentar o flagelo da desumanização, devem ser priorizadas a paixão pela justiça
e o gosto pela verdade.
O Papa Francisco, na sua Exortação Apostólica sobre
a Alegria do Evangelho, faz preciosa advertência que precisa tocar mais fundo os corações.
Ele sublinha a gravíssima responsabilidade de todos, quando se consideram situações
que estão produzindo, em velocidade assombrosa, um processo de desumanização. Esse
percurso nos leva a uma herança de realidades difíceis de serem revertidas. Trata-se
de sentença de morte, pois nenhum progresso material é capaz de superar e recuperar
estragos humanitários. São perdas que desfiguram a condição humana, afasta-a de sua
identidade e missão próprias.
A era do poder e da informação que caracteriza
este tempo inicial do terceiro milênio está produzindo, lamentavelmente, um caminho
na contramão da indispensável humanização, único pilar capaz de sustentar a vida nas
sociedades contemporâneas. Basta navegar pelo ambiente digital, o domínio determinante
e poderoso das redes sociais, para que se chegue a essa constatação. Uma referência
comum é o tratamento jocoso e debochado da dor alheia, do luto desrespeitado. Não
menos grave é o anonimato covarde na internet para manipular situações e confundir
as pessoas sobre a verdade, condição fundamental para o bem.
Este processo
crescente de desumanização envenena as relações interpessoais e as interfaces de instâncias
da sociedade. Empurra pessoas, grupos, famílias e igrejas para a condição de lobos
uns dos outros, com aparência de cordeiros. Vive-se uma realidade em que propaganda
enganosa, artimanhas políticas, mentirinhas e outros mecanismos são adotados pela
convicção de que os fins justificam os meios. É terrível o nível de hipocrisia e conveniência
nas falas, atitudes e apoios, gerando conivências tácitas com o mal, trazendo prejuízos
irreparáveis a instituições como a família, igrejas, governos, e a terrível neutralização
dos mais pobres e dos indefesos. Hipocrisia que partidariza ao extremo as relações
e conduz a atitudes de descarte do outro, ignorando o compromisso interpessoal, ensinado
pelo Evangelho, de ajuda ao próximo.
O flagelo da desumanização está alimentando,
com perversidade, a formação dos guetos e as consequentes segregações que incapacitam
para o diálogo, via única para a urgente construção de relações qualificadas na sociedade
contemporânea. As contradições são muitas e tecem um emaranhado inexplicável que obscurece
os corações do sentido de amar. O que se faz é por conveniência, sem escrúpulos. Manipulam-se
escolhas, juízos equivocados encontram justificativas, sempre.
A sociedade
desumanizada opera no submundo dos interesses mesquinhos, do uso das instituições
como lugares de satisfação de interesses particulares. Tudo funciona num “faz de conta”
que corrói o sentido e a alegria de se viver com liberdade e com autenticidade. Conta
sempre o patológico desejo de ser reconhecido como quem tem poder. Assim, a hipocrisia
e a arrogância comprometem a humanização da sociedade. Elas passam a nortear decisões
determinantes à sobrevivência dos mais pobres, especialmente na área econômica. O
crescimento e o equilíbrio da economia mundial e nacional não podem ser perseguidos
apenas com os mecanismos matemáticos, nem só pelas esperadas escolhas daqueles que
governam e constroem, de modo decisivo, a sociedade plural. Parafraseando o economês,
humanismo é um capital determinante para a sustentabilidade da sociedade mundial.
A crise de sentido e de valores se sobressai entre aquelas que ameaçam a humanização.
Ela fere um legado básico que, comprometido, produz os cenários aviltantes presenciados
pelo mundo. São guerras estarrecedoras, apoiadas por conivências e interesses espúrios,
que atentam contra a nobreza da humanidade. Uma realidade que condena os pobres ao
isolamento, consequência da incompetência de governos e da insensibilidade daqueles
que têm poder para dialogar, encontrar soluções, sem o uso da força policial e sem
o comodismo de contentar-se com a segregação.
Transformar esta realidade,
contudo, exige mais do que esperar ser convocado para o diálogo. É preciso agir e,
no atual contexto, o pleito eleitoral é oportunidade singular. Outras coisas são urgentes,
mas urgentíssimo é enfrentarmos, juntos, a tarefa de transformar as causas do devastador
flagelo da desumanização.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo Arcebispo
metropolitano de Belo Horizonte