Rio de Janeiro (RV) - A cruz é o sinal do cristão! Esta afirmação pode parecer
simples, mas tem profundidade teológica, pois quem busca um Cristo sem a cruz corre
o risco de encontrar uma cruz (sofrimento) sem Cristo. Enquanto seguidor de Cristo,
o cristão sabe que o Senhor é o Deus da vida a reinar glorioso, mas entende também
que o sofrimento, em suas diversas naturezas, é inerente à vida humana e, por isso,
o próprio Deus, embora não cause nem queira a dor, permite-a para fazer dela via de
santificação e salvação.
Isso ensina o Papa emérito Bento XVI em sua catequese
de 29 de outubro de 2008, ao tratar do mistério da cruz nos escritos do Apóstolo Paulo:
“As primeiras comunidades cristãs, às quais São Paulo se dirige, sabem muito bem que
Jesus já ressuscitou e está vivo; o Apóstolo quer recordar não apenas aos Coríntios
ou aos Gálatas, mas a todos nós, que o Ressuscitado é sempre Aquele que foi crucificado.
O ‘escândalo’ e a ‘loucura’ da Cruz encontram-se precisamente no fato de que onde
parece existir somente falência, dor e derrota, exatamente ali está todo o poder do
Amor ilimitado de Deus, porque a cruz é expressão de amor, e o amor é o verdadeiro
poder que se revela precisamente nesta aparente debilidade”.
D. Estevão Bettencourt,
OSB, escreve no editorial da revista Pergunte e Responderemos, nº 471, agosto de 2001,
p. 1: “Ao considerar a sorte final do cristão, o Apóstolo o tem como co-herdeiro do
Pai com Cristo, à condição de passar pela via régia por que passou o Senhor Jesus:
a via da cruz “... contanto que compadeçamos para que sejamos também glorificados”
(Rm 8,17). “O Senhor Jesus quis fazer do padecimento e da morte (consequências do
pecado) a estrada real que leva à glória. Sofrer com Cristo é configurar-se ao Filho
e tornar-se co-herdeiro do Pai”.
O cristão é “co-herdeiro do Pai com Cristo”,
ou seja, todos nós que recebemos, no Batismo, o dom da fé cristã e a professamos no
dia a dia somos cristãos. Deus quis, pelas águas batismais, tornar-nos filhos no Filho
(Gl 4,5-7). Sim, o Filho por excelência é Jesus Cristo e é n’Ele, por Ele e para Ele
que tudo foi criado, a fim de que em tudo fosse d’Ele a primazia (cf. Cl 1,15-20),
mas o Senhor, de modo livre e gratuito, nos chamou a tomar parte nessa herança divina.
Tornamo-nos, então, co-herdeiros: o Senhor Jesus, Filho de Deus, reparte conosco tudo
o que o Pai lhe deu.
Isso, todavia, tem apenas uma condição: “passar pela via
régia por que passou o Senhor Jesus: a via da cruz”. A cruz já não é mais um instrumento
de vergonha, loucura ou escândalo como foi para os povos antigos, mas é, depois da
paixão de Cristo, a via régia ou a estrada real que o Rei dos Reis e Senhor dos Senhores
quis, voluntariamente, como novo homem, passar a fim de abrir-nos, com seu sacrifício
redentor, as portas da salvação que o pecado do velho homem fechara.
Querer
estar com o Senhor nos bons momentos é muito fácil, os próprios apóstolos e discípulos
não ficaram imunes a essa terrível tentação. Tomemos apenas dois exemplos: a Transfiguração
no Tabor (cf. Mc 9,2-8), cujo relato mostra Pedro, Tiago e João entusiasmados com
o que viam: o Senhor Jesus envolto em glória acompanhado de Moisés e Elias, símbolos
da Lei e dos Profetas do Antigo Testamento. Querem ficar ali, fazer tendas para os
ilustres personagens. A eles nem um refúgio era necessário, já estavam felizes só
de poderem contemplar tamanha maravilha.
Contudo, o Senhor, sem privá-los desse
importante momento de gozo espiritual, chama-os à realidade convidando-os a descerem
da montanha, voltarem para as atividades diárias, retomarem a cruz de cada dia e segui-Lo
(cf. Lc 9,23). Também nós sofremos dessa tentação de querermos apenas o Senhor glorificado
e desprezarmos o Cristo chagado, cuspido, desprezado... É nada mais nem menos do que
a recusa da cruz e a busca apenas da glória. Tentação dos Apóstolos, tentação nossa!
Outro
fato portentoso é a multiplicação de pães e peixes (cf. Jo 6,26s), depois da qual
imensa multidão passou a seguir Jesus. O divino Mestre, no entanto, logo percebeu
que seus muitos seguidores não estavam interessados na renúncia e no sacrifício corredentor
que a vida cristã exige, mas, ao contrário, queriam apenas prosperidade material.
Buscavam não o verdadeiro Senhor, que é, sim, poderoso e ressuscitado, mas tão-somente
o Jesus taumaturgo ou milagreiro, capaz de satisfazer – às nossas ordens – todos os
nossos desejos e caprichos. Buscavam não o verdadeiro Deus, revelado plenamente
em Jesus Cristo, que ensina a pedir confiante o pão de cada dia (cf. Mt 6,11), mas
admoesta também a submetermo-nos ao projeto divino, cuja vontade deve ser feita (cf.
Mt 26,39), mas procuravam o deus da magia, submisso aos seus desejos mais mesquinhos.
Quem tem um deus assim, foge na hora do apuro, da cruz. Alguns discípulos que,
confusamente, esperavam um Messias glorioso e dominador político que lhes daria tronos
neste mundo, de modo que pudessem ficar um à sua direita e outro à sua esquerda podem,
simbolicamente, representar cada cristão que não entende o mistério da cruz. Que é
incapaz de compreender como Deus se fez homem e, sendo o governante de tudo, o Pantokrator,
se submete às forças deste mundo e à morte de cruz. Esse Deus não pode ser seguido,
mas, ao contrário, deve – na mentalidade dos que buscam apenas um Rei glorioso – ser
abandonado (cf. Mc 14,37s) e a renegado (Lc 22,54-62).
No entanto, a ação do
verdadeiro Deus não é assim, segundo relembra o Papa Bento XVI na catequese que já
citamos, ao dizer que: “a Cruz revela ‘o poder de Deus’ (cf. 1 Cor 1, 24), que é diferente
do poder humano; com efeito, revela o seu amor: ‘O que é considerado como loucura
de Deus é mais sábio que os homens, e o que é tido como debilidade de Deus é mais
forte que os homens’ (Ibid., v. 25). Há séculos de distância de Paulo, nós vemos que
na história venceu a Cruz e não a sabedoria que se opõe à Cruz. O Crucifixo é sabedoria,
porque manifesta verdadeiramente quem é Deus, ou seja, poder de amor que chega até
à Cruz para salvar o homem. Deus serve-se de modos e de instrumentos que para nós,
à primeira vista, parecem debilidade. O Crucifixo releva, por um lado, a debilidade
do homem e, por outro, o verdadeiro poder de Deus, ou seja, a gratuidade do amor:
precisamente esta total gratuidade do amor é a verdadeira sabedoria. São Paulo fez
esta experiência até na sua carne, e disto dá-nos testemunho em várias fases do seu
percurso espiritual, que se tornaram pontos de referência específicos para cada discípulo
de Jesus: ‘Ele disse-me: basta-te a minha graça, porque é na fraqueza que a minha
força se revela plenamente’ (2 Cor 12, 9); e ainda. ‘Deus escolheu o que é fraco,
segundo o mundo, para confundir o que é forte’ (1 Cor 1, 27). O Apóstolo identifica-se
a tal ponto com Cristo que também ele, embora se encontre no meio de muitas provações,
vive na fé do Filho de Deus que o amou e se entregou pelos pecados dele e de todos
(cf. Gl 1, 4; 2, 20). Este dado autobiográfico do Apóstolo torna-se paradigmático
para todos nós”.
“Contanto que compadeçamos para que sejamos também glorificados”.
Duas expressões aí têm seu peso teológico e prático, uma delas é “compadecer-se”.
Ora, o termo padecer se prende à raiz grega de pathos, que passou para o latim como
passio, passionis, em português, paixão ou sofrimento. Logo, compadecer-se – cum +
passio, nis – quer dizer padecer ou sofrer com... Daí uma importante questão: sofrer
com quem? – Sofrer com Cristo, especialmente presente na pessoa do irmão necessitado
a clamar por ajuda. Aliás, é o próprio São Paulo quem vai dizer: “completo em minha
carne o que falta à paixão de Cristo” (Cl 1,24).
Isso, à primeira vista, pode
parecer contraditório, pois a paixão do Senhor foi completa por si mesma, mas o que
o Apóstolo quer nos dizer é que mesmo sendo completa, Jesus quis a nossa participação
nela, dando-lhe uma moldura nova em nosso tempo. Eu aceito sofrer com Cristo ao assumir
a minha cruz e ajudar, qual Cirineu, o meu irmão a carregar a cruz dele. Isso é reviver
a Paixão do Senhor no compadecimento ou no sofrer junto aos que sofrem para melhor
entender o sentido real da cruz.
Escreveu o Papa João Paulo II: “Do paradoxo
da Cruz surge a resposta às nossas interrogações mais inquietantes. Cristo sofre por
nós: Ele assume sobre si os sofrimentos de todos e redime-os. Cristo sofre conosco,
dando-nos a possibilidade de partilhar com Ele os nossos sofrimentos. Juntamente com
o de Cristo, o sofrimento humano torna-se meio de salvação. Eis por que o crente pode
dizer com São Paulo: ‘Agora alegro-me nos sofrimentos que suporto por vós e completo
na minha carne o que falta às tribulações de Cristo, pelo seu Corpo, que é a Igreja’
(Cl 1,24). O sofrimento, aceito com fé, torna-se a porta para entrar no mistério do
sofrimento redentor do Senhor. Um sofrimento que já não priva da paz e da felicidade,
porque é iluminado pelo esplendor da ressurreição” (Mensagem Dia Mundial do Doente,
11/2/2004).
Outra reflexão é sobre “ser glorificado”: “O Senhor Jesus quis
fazer do padecimento e da morte (consequências do pecado) a estrada real que leva
à glória”, ou seja, quem não passa pela cruz não chega à glória... Cristo abriu-nos
as portas do Paraíso, mas quis (e quer) que nos esforcemos, com a sua graça, para
chegar lá. Por isso a cruz é importante. Não uma cruz distante para todos, mas uma
cruz próxima conforme entendeu São Paulo, segundo escreve Bento XVI na catequese já
citada: “Na experiência pessoal de São Paulo há um dado incontestável: enquanto no
início fora um perseguidor e recorrera à violência contra os cristãos, a partir do
momento da sua conversão no caminho de Damasco passara do lado de Cristo crucificado,
fazendo dele a sua razão de vida e o motivo da sua pregação. No encontro com Jesus,
tornou-se-lhe claro o significado central da Cruz: compreendera que Jesus tinha morrido
e ressuscitado por todos e por ele mesmo. Ambas as realidades eram importantes; a
universalidade: Jesus morreu realmente por todos; e a subjetividade: Ele morreu também
por mim. Portanto, na Cruz manifestou-se o amor gratuito e misericordioso de Deus.
Paulo experimentou este amor em si mesmo (cf. Gl 2, 20) e, de pecador, tornou-se crente;
de perseguidor, Apóstolo”.
Assumamos com Cristo a Cruz e encontraremos a verdadeira
vida, caminhando com certeza para a Páscoa da Ressurreição.
Orani João, Cardeal
Tempesta, O. Cist. Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro,
RJ