Texto da Introdução e Capítulos I e II da Exortação Apostólica "Evangelii gaudium"
Exortação Apostólica Evangelii gaudium do Papa Francisco ao Episcopado, ao clero,
às pessoas consagradas e aos fiéis leigos sobre o anúncio do Evangelho ao mundo
atual
1. A ALEGRIA DO EVANGELHO enche o coração e a vida inteira daqueles
que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do pecado,
da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo, renasce sem cessar
a alegria. Quero, com esta Exortação, dirigir-me aos fiéis cristãos a fim de os convidar
para uma nova etapa evangelizadora marcada por esta alegria e indicar caminhos para
o percurso da Igreja nos próximos anos.
1. Alegria que se renova e comunica
2. O
grande risco do mundo actual, com sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é
uma tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada
de prazeres superficiais, da consciência isolada. Quando a vida interior se fecha
nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres,
já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do seu amor, nem fervilha
o entusiasmo de fazer o bem. Este é um risco, certo e permanente, que correm também
os crentes. Muitos caem nele, transformando-se em pessoas ressentidas, queixosas,
sem vida. Esta não é a escolha duma vida digna e plena, este não é o desígnio que
Deus tem para nós, esta não é a vida no Espírito que jorra do coração de Cristo ressuscitado.
3. Convido
todo o cristão, em qualquer lugar e situação que se encontre, a renovar hoje mesmo
o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar
encontrar por Ele, de O procurar dia a dia sem cessar. Não há motivo para alguém poder
pensar que este convite não lhe diz respeito, já que «da alegria trazida pelo Senhor
ninguém é excluído». Quem arrisca, o Senhor não o desilude; e, quando alguém dá um
pequeno passo em direcção a Jesus, descobre que Ele já aguardava de braços abertos
a sua chegada. Este é o momento para dizer a Jesus Cristo: «Senhor, deixei-me enganar,
de mil maneiras fugi do vosso amor, mas aqui estou novamente para renovar a minha
aliança convosco. Preciso de Vós. Resgatai-me de novo, Senhor; aceitai-me mais uma
vez nos vossos braços redentores». Como nos faz bem voltar para Ele, quando nos perdemos!
Insisto uma vez mais: Deus nunca Se cansa de perdoar, somos nós que nos cansamos de
pedir a sua misericórdia. Aquele que nos convidou a perdoar «setenta vezes sete» (Mt
18, 22) dá-nos o exemplo: Ele perdoa setenta vezes sete. Volta uma vez e outra a carregar-nos
aos seus ombros. Ninguém nos pode tirar a dignidade que este amor infinito e inabalável
nos confere. Ele permite-nos levantar a cabeça e recomeçar, com uma ternura que nunca
nos defrauda e sempre nos pode restituir a alegria. Não fujamos da ressurreição de
Jesus; nunca nos demos por mortos, suceda o que suceder. Que nada possa mais do que
a sua vida que nos impele para diante!
4. Os livros do Antigo Testamento preanunciaram
a alegria da salvação, que havia de tornar-se superabundante nos tempos messiânicos.
O profeta Isaías dirige-se ao Messias esperado, saudando-O com regozijo: «Multiplicaste
a alegria, aumentaste o júbilo» (9, 2). E anima os habitantes de Sião a recebê-Lo
com cânticos: «Exultai de alegria!» (12, 6). A quem já O avistara no horizonte, o
profeta convida-o a tornar-se mensageiro para os outros: «Sobe a um alto monte, arauto
de Sião! Grita com voz forte, arauto de Jerusalém» (40, 9). A criação inteira participa
nesta alegria da salvação: «Cantai, ó céus! Exulta de alegria, ó terra! Rompei em
exclamações, ó montes! Na verdade, o Senhor consola o seu povo e se compadece dos
desamparados» (49, 13). Zacarias, vendo o dia do Senhor, convida a vitoriar o Rei
que chega «humilde, montado num jumento»: «Exulta de alegria, filha de Sião! Solta
gritos de júbilo, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti. Ele é justo e vitorioso»
(9, 9). Mas o convite mais tocante talvez seja o do profeta Sofonias, que nos mostra
o próprio Deus como um centro irradiante de festa e de alegria, que quer comunicar
ao seu povo este júbilo salvífico. Enche-me de vida reler este texto: «O Senhor, teu
Deus, está no meio de ti como poderoso salvador! Ele exulta de alegria por tua causa,
pelo seu amor te renovará. Ele dança e grita de alegria por tua causa» (3, 17). É
a alegria que se vive no meio das pequenas coisas da vida quotidiana, como resposta
ao amoroso convite de Deus nosso Pai: «Meu filho, se tens com quê, trata-te bem (...).
Não te prives da felicidade presente» (Sir 14, 11.14). Quanta ternura paterna se vislumbra
por detrás destas palavras!
5. O Evangelho, onde resplandece gloriosa a Cruz
de Cristo, convida insistentemente à alegria. Apenas alguns exemplos: «Alegra-te»
é a saudação do anjo a Maria (Lc 1, 28). A visita de Maria a Isabel faz com que João
salte de alegria no ventre de sua mãe (cf. Lc 1, 41). No seu cântico, Maria proclama:
«O meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador» (Lc 1, 47). E, quando Jesus começa
o seu ministério, João exclama: «Esta é a minha alegria! E tornou-se completa!» (Jo
3, 29). O próprio Jesus «estremeceu de alegria sob a acção do Espírito Santo» (Lc
10, 21). A sua mensagem é fonte de alegria: «Manifestei-vos estas coisas, para que
esteja em vós a minha alegria, e a vossa alegria seja completa» (Jo 15, 11). A nossa
alegria cristã brota da fonte do seu coração transbordante. Ele promete aos seus discípulos:
«Vós haveis de estar tristes, mas a vossa tristeza há-de converter-se em alegria»
(Jo 16, 20). E insiste: «Eu hei-de ver-vos de novo! Então, o vosso coração há-de alegrar-se
e ninguém vos poderá tirar a vossa alegria» (Jo 16, 22). Depois, ao verem-No ressuscitado,
«encheram-se de alegria» (Jo 20, 20). O livro dos Actos dos Apóstolos conta que, na
primitiva comunidade, «tomavam o alimento com alegria» (2, 46). Por onde passaram
os discípulos, «houve grande alegria» (8, 8); e eles, no meio da perseguição, «estavam
cheios de alegria» (13, 52). Um eunuco, recém-baptizado, «seguiu o seu caminho cheio
de alegria» (8, 39); e o carcereiro «entregou-se, com a família, à alegria de ter
acreditado em Deus» (16, 34). Porque não havemos de entrar, também nós, nesta torrente
de alegria?
6. Há cristãos que parecem ter escolhido viver uma Quaresma sem
Páscoa. Reconheço, porém, que a alegria não se vive da mesma maneira em todas as etapas
e circunstâncias da vida, por vezes muito duras. Adapta-se e transforma-se, mas sempre
permanece pelo menos como um feixe de luz que nasce da certeza pessoal de, não obstante
o contrário, sermos infinitamente amados. Compreendo as pessoas que se vergam à tristeza
por causa das graves dificuldades que têm de suportar, mas aos poucos é preciso permitir
que a alegria da fé comece a despertar, como uma secreta mas firme confiança, mesmo
no meio das piores angústias: «A paz foi desterrada da minha alma, já nem sei o que
é a felicidade (…). Isto, porém, guardo no meu coração; por isso, mantenho a esperança.
É que a misericórdia do Senhor não acaba, não se esgota a sua compaixão. Cada manhã
ela se renova; é grande a tua fidelidade. (...) Bom é esperar em silêncio a salvação
do Senhor» (Lm 3, 17.21-23.26).
7. A tentação apresenta-se, frequentemente,
sob forma de desculpas e queixas, como se tivesse de haver inúmeras condições para
ser possível a alegria. Habitualmente isto acontece, porque «a sociedade técnica teve
a possibilidade de multiplicar as ocasiões de prazer; no entanto ela encontra dificuldades
grandes no engendrar também a alegria». Posso dizer que as alegrias mais belas e espontâneas,
que vi ao longo da minha vida, são as alegrias de pessoas muito pobres que têm pouco
a que se agarrar. Recordo também a alegria genuína daqueles que, mesmo no meio de
grandes compromissos profissionais, souberam conservar um coração crente, generoso
e simples. De várias maneiras, estas alegrias bebem na fonte do amor maior, que é
o de Deus, a nós manifestado em Jesus Cristo. Não me cansarei de repetir estas palavras
de Bento XVI que nos levam ao centro do Evangelho: «Ao início do ser cristão, não
há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com
uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo».
8. Somente
graças a este encontro – ou reencontro – com o amor de Deus, que se converte em amizade
feliz, é que somos resgatados da nossa consciência isolada e da auto-referencialidade.
Chegamos a ser plenamente humanos, quando somos mais do que humanos, quando permitimos
a Deus que nos conduza para além de nós mesmos a fim de alcançarmos o nosso ser mais
verdadeiro. Aqui está a fonte da acção evangelizadora. Porque, se alguém acolheu este
amor que lhe devolve o sentido da vida, como é que pode conter o desejo de o comunicar
aos outros?
2. A doce e reconfortante alegria de evangelizar
9. O
bem tende sempre a comunicar-se. Toda a experiência autêntica de verdade e de beleza
procura, por si mesma, a sua expansão; e qualquer pessoa que viva uma libertação profunda
adquire maior sensibilidade face às necessidades dos outros. E, uma vez comunicado,
o bem radica-se e desenvolve-se. Por isso, quem deseja viver com dignidade e em plenitude,
não tem outro caminho senão reconhecer o outro e buscar o seu bem. Assim, não nos
deveriam surpreender frases de São Paulo como estas: «O amor de Cristo nos absorve
completamente» (2 Cor 5, 14); «ai de mim, se eu não evangelizar!» (1 Cor 9, 16).
10. A
proposta é viver a um nível superior, mas não com menor intensidade: «Na doação, a
vida se fortalece; e se enfraquece no comodismo e no isolamento. De facto, os que
mais desfrutam da vida são os que deixam a segurança da margem e se apaixonam pela
missão de comunicar a vida aos demais». Quando a Igreja faz apelo ao compromisso evangelizador,
não faz mais do que indicar aos cristãos o verdadeiro dinamismo da realização pessoal:
«Aqui descobrimos outra profunda lei da realidade: “A vida se alcança e amadurece
à medida que é entregue para dar vida aos outros”. Isto é, definitivamente, a missão».
Consequentemente, um evangelizador não deveria ter constantemente uma cara de funeral.
Recuperemos e aumentemos o fervor de espírito, «a suave e reconfortante alegria de
evangelizar, mesmo quando for preciso semear com lágrimas! (...) E que o mundo do
nosso tempo, que procura ora na angústia ora com esperança, possa receber a Boa Nova
dos lábios, não de evangelizadores tristes e descoroçoados, impacientes ou ansiosos,
mas sim de ministros do Evangelho cuja vida irradie fervor, pois foram quem recebeu
primeiro em si a alegria de Cristo».
Uma eterna novidade
11. Um anúncio
renovado proporciona aos crentes, mesmo tíbios ou não praticantes, uma nova alegria
na fé e uma fecundidade evangelizadora. Na realidade, o seu centro e a sua essência
são sempre o mesmo: o Deus que manifestou o seu amor imenso em Cristo morto e ressuscitado.
Ele torna os seus fiéis sempre novos; ainda que sejam idosos, «renovam as suas forças.
Têm asas como a águia, correm sem se cansar, marcham sem desfalecer» (Is 40, 31).
Cristo é a «Boa-Nova de valor eterno» (Ap 14, 6), sendo «o mesmo ontem, hoje e pelos
séculos» (Heb 13, 8), mas a sua riqueza e a sua beleza são inesgotáveis. Ele é sempre
jovem, e fonte de constante novidade. A Igreja não cessa de se maravilhar com a «profundidade
de riqueza, de sabedoria e de ciência de Deus» (Rm 11, 33). São João da Cruz dizia:
«Esta espessura de sabedoria e ciência de Deus é tão profunda e imensa, que, por mais
que a alma saiba dela, sempre pode penetrá-la mais profundamente». Ou ainda, como
afirmava Santo Ireneu: «Na sua vinda, [Cristo] trouxe consigo toda a novidade». Com
a sua novidade, Ele pode sempre renovar a nossa vida e a nossa comunidade, e a proposta
cristã, ainda que atravesse períodos obscuros e fraquezas eclesiais, nunca envelhece.
Jesus Cristo pode romper também os esquemas enfadonhos em que pretendemos aprisioná-Lo,
e surpreende-nos com a sua constante criatividade divina. Sempre que procuramos voltar
à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho, despontam novas estradas, métodos
criativos, outras formas de expressão, sinais mais eloquentes, palavras cheias de
renovado significado para o mundo actual. Na realidade, toda a acção evangelizadora
autêntica é sempre «nova».
12. Embora esta missão nos exija uma entrega generosa,
seria um erro considerá-la como uma heróica tarefa pessoal, dado que ela é, primariamente
e acima de tudo o que possamos sondar e compreender, obra de Deus. Jesus é «o primeiro
e o maior evangelizador». Em qualquer forma de evangelização, o primado é sempre de
Deus, que quis chamar-nos para cooperar com Ele e impelir-nos com a força do seu Espírito.
A verdadeira novidade é aquela que o próprio Deus misteriosamente quer produzir, aquela
que Ele inspira, aquela que Ele provoca, aquela que Ele orienta e acompanha de mil
e uma maneiras. Em toda a vida da Igreja, deve-se sempre manifestar que a iniciativa
pertence a Deus, «porque Ele nos amou primeiro» (1 Jo 4, 19) e é «só Deus que faz
crescer» (1 Cor 3, 7). Esta convicção permite-nos manter a alegria no meio duma tarefa
tão exigente e desafiadora que ocupa inteiramente a nossa vida. Pede-nos tudo, mas
ao mesmo tempo dá-nos tudo.
13. E também não deveremos entender a novidade
desta missão como um desenraizamento, como um esquecimento da história viva que nos
acolhe e impele para diante. A memória é uma dimensão da nossa fé, que, por analogia
com a memória de Israel, poderíamos chamar «deuteronómica». Jesus deixa-nos a Eucaristia
como memória quotidiana da Igreja, que nos introduz cada vez mais na Páscoa (cf. Lc
22, 19). A alegria evangelizadora refulge sempre sobre o horizonte da memória agradecida:
é uma graça que precisamos de pedir. Os Apóstolos nunca mais esqueceram o momento
em que Jesus lhes tocou o coração: «Eram as quatro horas da tarde» (Jo 1, 39). A memória
faz-nos presente, juntamente com Jesus, uma verdadeira «nuvem de testemunhas» (Heb
12, 1). De entre elas, distinguem-se algumas pessoas que incidiram de maneira especial
para fazer germinar a nossa alegria crente: «Recordai-vos dos vossos guias, que vos
pregaram a palavra de Deus» (Heb 13, 7). Às vezes, trata-se de pessoas simples e próximas
de nós, que nos iniciaram na vida da fé: «Trago à memória a tua fé sem fingimento,
que se encontrava já na tua avó Lóide e na tua mãe Eunice» (2 Tm 1, 5). O crente é,
fundamentalmente, «uma pessoa que faz memória».
3. A nova evangelização
para a transmissão da fé
14. À escuta do Espírito, que nos ajuda a reconhecer
comunitariamente os sinais dos tempos, celebrou-se de 7 a 28 de Outubro de 2012 a
XIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, sobre o tema A nova evangelização
para a transmissão da fé cristã. Lá foi recordado que a nova evangelização interpela
a todos, realizando-se fundamentalmente em três âmbitos. Em primeiro lugar, mencionamos
o âmbito da pastoral ordinária, «animada pelo fogo do Espírito a fim de incendiar
os corações dos fiéis que frequentam regularmente a comunidade, reunindo-se no dia
do Senhor, para se alimentarem da sua Palavra e do Pão de vida eterna». Devem ser
incluídos também neste âmbito os fiéis que conservam uma fé católica intensa e sincera,
exprimindo-a de diversos modos, embora não participem frequentemente no culto. Esta
pastoral está orientada para o crescimento dos crentes, a fim de corresponderem cada
vez melhor e com toda a sua vida ao amor de Deus. Em segundo lugar, lembramos o
âmbito das «pessoas baptizadas que, porém, não vivem as exigências do Baptismo», não
sentem uma pertença cordial à Igreja e já não experimentam a consolação da fé. Mãe
sempre solícita, a Igreja esforça-se para que elas vivam uma conversão que lhes restitua
a alegria da fé e o desejo de se comprometerem com o Evangelho. Por fim, frisamos
que a evangelização está essencialmente relacionada com a proclamação do Evangelho
àqueles que não conhecem Jesus Cristo ou que sempre O recusaram. Muitos deles buscam
secretamente a Deus, movidos pela nostalgia do seu rosto, mesmo em países de antiga
tradição cristã. Todos têm o direito de receber o Evangelho. Os cristãos têm o dever
de o anunciar, sem excluir ninguém, e não como quem impõe uma nova obrigação, mas
como quem partilha uma alegria, indica um horizonte estupendo, oferece um banquete
apetecível. A Igreja não cresce por proselitismo, mas «por atracção».
15. João
Paulo II convidou-nos a reconhecer que «não se pode perder a tensão para o anúncio»
àqueles que estão longe de Cristo, «porque esta é a tarefa primária da Igreja». A
actividade missionária «ainda hoje representa o máximo desafio para a Igreja» e «a
causa missionária deve ser (…) a primeira de todas as causas». Que sucederia se tomássemos
realmente a sério estas palavras? Simplesmente reconheceríamos que a acção missionária
é o paradigma de toda a obra da Igreja. Nesta linha, os Bispos latino-americanos afirmaram
que «não podemos ficar tranquilos, em espera passiva, em nossos templos», sendo necessário
passar «de uma pastoral de mera conservação para uma pastoral decididamente missionária».
Esta tarefa continua a ser a fonte das maiores alegrias para a Igreja: «Haverá mais
alegria no Céu por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos
que não necessitam de conversão» (Lc 15, 7).
A proposta desta Exortação e seus
contornos
16. Com prazer, aceitei o convite dos Padres sinodais para redigir
esta Exortação. Para o efeito, recolho a riqueza dos trabalhos do Sínodo; consultei
também várias pessoas e pretendo, além disso, exprimir as preocupações que me movem
neste momento concreto da obra evangelizadora da Igreja. Os temas relacionados com
a evangelização no mundo actual, que se poderiam desenvolver aqui, são inumeráveis.
Mas renunciei a tratar detalhadamente esta multiplicidade de questões que devem ser
objecto de estudo e aprofundamento cuidadoso. Penso, aliás, que não se deve esperar
do magistério papal uma palavra definitiva ou completa sobre todas as questões que
dizem respeito à Igreja e ao mundo. Não convém que o Papa substitua os episcopados
locais no discernimento de todas as problemáticas que sobressaem nos seus territórios.
Neste sentido, sinto a necessidade de proceder a uma salutar «descentralização».
17. Aqui
escolhi propor algumas directrizes que possam encorajar e orientar, em toda a Igreja,
uma nova etapa evangelizadora, cheia de ardor e dinamismo. Neste quadro e com base
na doutrina da Constituição dogmática Lumen gentium, decidi, entre outros temas, de
me deter amplamente sobre as seguintes questões: a) A reforma da Igreja em saída
missionária. b) As tentações dos agentes pastorais. c) A Igreja vista como a
totalidade do povo de Deus que evangeliza. d) A homilia e a sua preparação. e)
A inclusão social dos pobres. f) A paz e o diálogo social. g) As motivações
espirituais para o compromisso missionário.
18. Demorei-me nestes temas, desenvolvendo-os
dum modo que talvez possa parecer excessivo. Mas não o fiz com a intenção de oferecer
um tratado, mas só para mostrar a relevante incidência prática destes assuntos na
missão actual da Igreja. De facto, todos eles ajudam a delinear um preciso estilo
evangelizador, que convido a assumir em qualquer actividade que se realize. E, desta
forma, podemos assumir, no meio do nosso trabalho diário, esta exortação da Palavra
de Deus: «Alegrai-vos sempre no Senhor! De novo vos digo: alegrai-vos!» (Fl 4, 4).
Capítulo
I A TRANSFORMAÇÃO MISSIONÁRIA DA IGREJA
19. A evangelização obedece
ao mandato missionário de Jesus: «Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos, baptizando-os
em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos
tenho mandado» (Mt 28, 19-20). Nestes versículos, aparece o momento em que o Ressuscitado
envia os seus a pregar o Evangelho em todos os tempos e lugares, para que a fé n’Ele
se estenda a todos os cantos da terra.
1. Uma Igreja «em saída»
20. Na
Palavra de Deus, aparece constantemente este dinamismo de «saída», que Deus quer provocar
nos crentes. Abraão aceitou a chamada para partir rumo a uma nova terra (cf. Gn 12,
1-3). Moisés ouviu a chamada de Deus: «Vai; Eu te envio» (Ex 3, 10), e fez sair o
povo para a terra prometida (cf. Ex 3, 17). A Jeremias disse: «Irás aonde Eu te enviar»
(Jr 1, 7). Naquele «ide» de Jesus, estão presentes os cenários e os desafios sempre
novos da missão evangelizadora da Igreja, e hoje todos somos chamados a esta nova
«saída» missionária. Cada cristão e cada comunidade há-de discernir qual é o caminho
que o Senhor lhe pede, mas todos somos convidados a aceitar esta chamada: sair da
própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da
luz do Evangelho.
21. A alegria do Evangelho, que enche a vida da comunidade
dos discípulos, é uma alegria missionária. Experimentam-na os setenta e dois discípulos,
que voltam da missão cheios de alegria (cf. Lc 10, 17). Vive-a Jesus, que exulta de
alegria no Espírito Santo e louva o Pai, porque a sua revelação chega aos pobres e
aos pequeninos (cf. Lc 10, 21). Sentem-na, cheios de admiração, os primeiros que se
convertem no Pentecostes, ao ouvir «cada um na sua própria língua» (Act 2, 6) a pregação
dos Apóstolos. Esta alegria é um sinal de que o Evangelho foi anunciado e está a frutificar.
Mas contém sempre a dinâmica do êxodo e do dom, de sair de si mesmo, de caminhar e
de semear sempre de novo, sempre mais além. O Senhor diz: «Vamos para outra parte,
para as aldeias vizinhas, a fim de pregar aí, pois foi para isso que Eu vim» (Mc 1,
38). Ele, depois de lançar a semente num lugar, não se demora lá a explicar melhor
ou a cumprir novos sinais, mas o Espírito leva-O a partir para outras aldeias.
22. A
Palavra possui, em si mesma, uma tal potencialidade, que não a podemos prever. O Evangelho
fala da semente que, uma vez lançada à terra, cresce por si mesma, inclusive quando
o agricultor dorme (cf. Mc 4, 26-29). A Igreja deve aceitar esta liberdade incontrolável
da Palavra, que é eficaz a seu modo e sob formas tão variadas que muitas vezes nos
escapam, superando as nossas previsões e quebrando os nossos esquemas.
23. A
intimidade da Igreja com Jesus é uma intimidade itinerante, e a comunhão «reveste
essencialmente a forma de comunhão missionária». Fiel ao modelo do Mestre, é vital
que hoje a Igreja saia para anunciar o Evangelho a todos, em todos os lugares, em
todas as ocasiões, sem demora, sem repugnâncias e sem medo. A alegria do Evangelho
é para todo o povo, não se pode excluir ninguém; assim foi anunciada pelo anjo aos
pastores de Belém: «Não temais, pois anuncio-vos uma grande alegria, que o será para
todo o povo» (Lc 2, 10). O Apocalipse fala de «uma Boa-Nova de valor eterno para anunciar
aos habitantes da terra: a todas as nações, tribos, línguas e povos» (Ap 14, 6).
«Primeirear»,
envolver-se, acompanhar, frutificar e festejar
24. A Igreja «em saída» é a
comunidade de discípulos missionários que «primeireiam», que se envolvem, que acompanham,
que frutificam e festejam. Primeireiam – desculpai o neologismo –, tomam a iniciativa!
A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a no
amor (cf. 1 Jo 4, 10), e, por isso, ela sabe ir à frente, sabe tomar a iniciativa
sem medo, ir ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos
para convidar os excluídos. Vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia, fruto
de ter experimentado a misericórdia infinita do Pai e a sua força difusiva. Ousemos
um pouco mais no tomar a iniciativa! Como consequência, a Igreja sabe «envolver-se».
Jesus lavou os pés aos seus discípulos. O Senhor envolve-Se e envolve os seus, pondo-Se
de joelhos diante dos outros para os lavar; mas, logo a seguir, diz aos discípulos:
«Sereis felizes se o puserdes em prática» (Jo 13, 17). Com obras e gestos, a comunidade
missionária entra na vida diária dos outros, encurta as distâncias, abaixa-se – se
for necessário – até à humilhação e assume a vida humana, tocando a carne sofredora
de Cristo no povo. Os evangelizadores contraem assim o «cheiro de ovelha», e estas
escutam a sua voz. Em seguida, a comunidade evangelizadora dispõe-se a «acompanhar».
Acompanha a humanidade em todos os seus processos, por mais duros e demorados que
sejam. Conhece as longas esperas e a suportação apostólica. A evangelização patenteia
muita paciência, e evita deter-se a considerar as limitações. Fiel ao dom do Senhor,
sabe também «frutificar». A comunidade evangelizadora mantém-se atenta aos frutos,
porque o Senhor a quer fecunda. Cuida do trigo e não perde a paz por causa do joio.
O semeador, quando vê surgir o joio no meio do trigo, não tem reacções lastimosas
ou alarmistas. Encontra o modo para fazer com que a Palavra se encarne numa situação
concreta e dê frutos de vida nova, apesar de serem aparentemente imperfeitos ou defeituosos.
O discípulo sabe oferecer a vida inteira e jogá-la até ao martírio como testemunho
de Jesus Cristo, mas o seu sonho não é estar cheio de inimigos, mas antes que a Palavra
seja acolhida e manifeste a sua força libertadora e renovadora. Por fim, a comunidade
evangelizadora jubilosa sabe sempre «festejar»: celebra e festeja cada pequena vitória,
cada passo em frente na evangelização. No meio desta exigência diária de fazer avançar
o bem, a evangelização jubilosa torna-se beleza na liturgia. A Igreja evangeliza e
se evangeliza com a beleza da liturgia, que é também celebração da actividade evangelizadora
e fonte dum renovado impulso para se dar.
2. Pastoral em conversão
25. Não
ignoro que hoje os documentos não suscitam o mesmo interesse que noutras épocas, acabando
rapidamente esquecidos. Apesar disso sublinho que, aquilo que pretendo deixar expresso
aqui, possui um significado programático e tem consequências importantes. Espero que
todas as comunidades se esforcem por actuar os meios necessários para avançar no caminho
duma conversão pastoral e missionária, que não pode deixar as coisas como estão. Neste
momento, não nos serve uma «simples administração». Constituamo-nos em «estado permanente
de missão», em todas as regiões da terra.
26. Paulo VI convidou a alargar o
apelo à renovação de modo que ressalte, com força, que não se dirige apenas aos indivíduos,
mas à Igreja inteira. Lembremos este texto memorável, que não perdeu a sua força interpeladora:
«A Igreja deve aprofundar a consciência de si mesma, meditar sobre o seu próprio mistério
(...). Desta consciência esclarecida e operante deriva espontaneamente um desejo de
comparar a imagem ideal da Igreja, tal como Cristo a viu, quis e amou, ou seja, como
sua Esposa santa e imaculada (Ef 5, 27), com o rosto real que a Igreja apresenta hoje.
(…) Em consequência disso, surge uma necessidade generosa e quase impaciente de renovação,
isto é, de emenda dos defeitos, que aquela consciência denuncia e rejeita, como se
fosse um exame interior ao espelho do modelo que Cristo nos deixou de Si mesmo». O
Concílio Vaticano II apresentou a conversão eclesial como a abertura a uma reforma
permanente de si mesma por fidelidade a Jesus Cristo: «Toda a renovação da Igreja
consiste essencialmente numa maior fidelidade à própria vocação. (…) A Igreja peregrina
é chamada por Cristo a esta reforma perene. Como instituição humana e terrena, a Igreja
necessita perpetuamente desta reforma». Há estruturas eclesiais que podem chegar
a condicionar um dinamismo evangelizador; de igual modo, as boas estruturas servem
quando há uma vida que as anima, sustenta e avalia. Sem vida nova e espírito evangélico
autêntico, sem «fidelidade da Igreja à própria vocação», toda e qualquer nova estrutura
se corrompe em pouco tempo.
Uma renovação eclesial inadiável
27. Sonho
com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos,
os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado
mais à evangelização do mundo actual que à auto-preservação. A reforma das estruturas,
que a conversão pastoral exige, só se pode entender neste sentido: fazer com que todas
elas se tornem mais missionárias, que a pastoral ordinária em todas as suas instâncias
seja mais comunicativa e aberta, que coloque os agentes pastorais em atitude constante
de «saída» e, assim, favoreça a resposta positiva de todos aqueles a quem Jesus oferece
a sua amizade. Como dizia João Paulo II aos Bispos da Oceânia, «toda a renovação na
Igreja há-de ter como alvo a missão, para não cair vítima duma espécie de introversão
eclesial».
28. A paróquia não é uma estrutura caduca; precisamente porque
possui uma grande plasticidade, pode assumir formas muito diferentes que requerem
a docilidade e a criatividade missionária do Pastor e da comunidade. Embora não seja
certamente a única instituição evangelizadora, se for capaz de se reformar e adaptar
constantemente, continuará a ser «a própria Igreja que vive no meio das casas dos
seus filhos e das suas filhas». Isto supõe que esteja realmente em contacto com as
famílias e com a vida do povo, e não se torne uma estrutura complicada, separada das
pessoas, nem um grupo de eleitos que olham para si mesmos. A paróquia é presença eclesial
no território, âmbito para a escuta da Palavra, o crescimento da vida cristã, o diálogo,
o anúncio, a caridade generosa, a adoração e a celebração. Através de todas as suas
actividades, a paróquia incentiva e forma os seus membros para serem agentes da evangelização.
É comunidade de comunidades, santuário onde os sedentos vão beber para continuarem
a caminhar, e centro de constante envio missionário. Temos, porém, de reconhecer que
o apelo à revisão e renovação das paróquias ainda não deu suficientemente fruto, tornando-se
ainda mais próximas das pessoas, sendo âmbitos de viva comunhão e participação e orientando-se
completamente para a missão.
29. As outras instituições eclesiais, comunidades
de base e pequenas comunidades, movimentos e outras formas de associação são uma riqueza
da Igreja que o Espírito suscita para evangelizar todos os ambientes e sectores. Frequentemente
trazem um novo ardor evangelizador e uma capacidade de diálogo com o mundo que renovam
a Igreja. Mas é muito salutar que não percam o contacto com esta realidade muito rica
da paróquia local e que se integrem de bom grado na pastoral orgânica da Igreja particular.
Esta integração evitará que fiquem só com uma parte do Evangelho e da Igreja, ou que
se transformem em nómades sem raízes.
30. Cada Igreja particular, porção da
Igreja Católica sob a guia do seu Bispo, está, também ela, chamada à conversão missionária.
Ela é o sujeito primário da evangelização, enquanto é a manifestação concreta da única
Igreja num lugar da terra e, nela, «está verdadeiramente presente e opera a Igreja
de Cristo, una, santa, católica e apostólica». É a Igreja encarnada num espaço concreto,
dotada de todos os meios de salvação dados por Cristo, mas com um rosto local. A sua
alegria de comunicar Jesus Cristo exprime-se tanto na sua preocupação por anunciá-Lo
noutros lugares mais necessitados, como numa constante saída para as periferias do
seu território ou para os novos âmbitos socioculturais. Procura estar sempre onde
fazem mais falta a luz e a vida do Ressuscitado. Para que este impulso missionário
seja cada vez mais intenso, generoso e fecundo, exorto também cada uma das Igrejas
particulares a entrar decididamente num processo de discernimento, purificação e reforma.
31. O
Bispo deve favorecer sempre a comunhão missionária na sua Igreja diocesana, seguindo
o ideal das primeiras comunidades cristãs, em que os crentes tinham um só coração
e uma só alma (cf. Act 4, 32) . Para isso, às vezes pôr-se-á à frente para indicar
a estrada e sustentar a esperança do povo, outras vezes manter-se-á simplesmente no
meio de todos com a sua proximidade simples e misericordiosa e, em certas circunstâncias,
deverá caminhar atrás do povo, para ajudar aqueles que se atrasaram e sobretudo porque
o próprio rebanho possui o olfacto para encontrar novas estradas. Na sua missão de
promover uma comunhão dinâmica, aberta e missionária, deverá estimular e procurar
o amadurecimento dos organismos de participação propostos pelo Código de Direito Canónico
e de outras formas de diálogo pastoral, com o desejo de ouvir a todos, e não apenas
alguns sempre prontos a lisonjeá-lo. Mas o objectivo destes processos participativos
não há-de ser principalmente a organização eclesial, mas o sonho missionário de chegar
a todos.
32. Dado que sou chamado a viver aquilo que peço aos outros, devo
pensar também numa conversão do papado. Compete-me, como Bispo de Roma, permanecer
aberto às sugestões tendentes a um exercício do meu ministério que o torne mais fiel
ao significado que Jesus Cristo pretendeu dar-lhe e às necessidades actuais da evangelização.
O Papa João Paulo II pediu que o ajudassem a encontrar «uma forma de exercício do
primado que, sem renunciar de modo algum ao que é essencial da sua missão, se abra
a uma situação nova». Pouco temos avançado neste sentido. Também o papado e as estruturas
centrais da Igreja universal precisam de ouvir este apelo a uma conversão pastoral.
O Concílio Vaticano II afirmou que, à semelhança das antigas Igrejas patriarcais,
as conferências episcopais podem «aportar uma contribuição múltipla e fecunda, para
que o sentimento colegial leve a aplicações concretas». Mas este desejo não se realizou
plenamente, porque ainda não foi suficientemente explicitado um estatuto das conferências
episcopais que as considere como sujeitos de atribuições concretas, incluindo alguma
autêntica autoridade doutrinal. Uma centralização excessiva, em vez de ajudar, complica
a vida da Igreja e a sua dinâmica missionária.
33. A pastoral em chave missionária
exige o abandono deste cómodo critério pastoral: «fez-se sempre assim». Convido todos
a serem ousados e criativos nesta tarefa de repensar os objectivos, as estruturas,
o estilo e os métodos evangelizadores das respectivas comunidades. Uma identificação
dos fins, sem uma condigna busca comunitária dos meios para os alcançar, está condenada
a traduzir-se em mera fantasia. A todos exorto a aplicarem, com generosidade e coragem,
as orientações deste documento, sem impedimentos nem receios. Importante é não caminhar
sozinho, mas ter sempre em conta os irmãos e, de modo especial, a guia dos Bispos,
num discernimento pastoral sábio e realista.
3. A partir do coração do
Evangelho
34. Se pretendemos colocar tudo em chave missionária, isso aplica-se
também à maneira de comunicar a mensagem. No mundo actual, com a velocidade das comunicações
e a selecção interessada dos conteúdos feita pelos mass-media, a mensagem que anunciamos
corre mais do que nunca o risco de aparecer mutilada e reduzida a alguns dos seus
aspectos secundários. Consequentemente, algumas questões que fazem parte da doutrina
moral da Igreja ficam fora do contexto que lhes dá sentido. O problema maior ocorre
quando a mensagem que anunciamos parece então identificada com tais aspectos secundários,
que, apesar de serem relevantes, por si sozinhos não manifestam o coração da mensagem
de Jesus Cristo. Portanto, convém ser realistas e não dar por suposto que os nossos
interlocutores conhecem o horizonte completo daquilo que dizemos ou que eles podem
relacionar o nosso discurso com o núcleo essencial do Evangelho que lhe confere sentido,
beleza e fascínio.
35. Uma pastoral em chave missionária não está obsessionada
pela transmissão desarticulada de uma imensidade de doutrinas que se tentam impor
à força de insistir. Quando se assume um objectivo pastoral e um estilo missionário,
que chegue realmente a todos sem excepções nem exclusões, o anúncio concentra-se no
essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais
necessário. A proposta acaba simplificada, sem com isso perder profundidade e verdade,
e assim se torna mais convincente e radiosa.
36. Todas as verdades reveladas
procedem da mesma fonte divina e são acreditadas com a mesma fé, mas algumas delas
são mais importantes por exprimir mais directamente o coração do Evangelho. Neste
núcleo fundamental, o que sobressai é a beleza do amor salvífico de Deus manifestado
em Jesus Cristo morto e ressuscitado. Neste sentido, o Concílio Vaticano II afirmou
que «existe uma ordem ou “hierarquia” das verdades da doutrina católica, já que o
nexo delas com o fundamento da fé cristã é diferente». Isto é válido tanto para os
dogmas da fé como para o conjunto dos ensinamentos da Igreja, incluindo a doutrina
moral.
37. São Tomás de Aquino ensinava que, também na mensagem moral da Igreja,
há uma hierarquia nas virtudes e acções que delas procedem. Aqui o que conta é, antes
de mais nada, «a fé que actua pelo amor» (Gal 5, 6). As obras de amor ao próximo são
a manifestação externa mais perfeita da graça interior do Espírito: «O elemento principal
da Nova Lei é a graça do Espírito Santo, que se manifesta através da fé que opera
pelo amor». Por isso afirma que, relativamente ao agir exterior, a misericórdia é
a maior de todas as virtudes: «Em si mesma, a misericórdia é a maior das virtudes;
na realidade, compete-lhe debruçar-se sobre os outros e – o que mais conta – remediar
as misérias alheias. Ora, isto é tarefa especialmente de quem é superior; é por isso
que se diz que é próprio de Deus usar de misericórdia e é, sobretudo nisto, que se
manifesta a sua omnipotência».
38. É importante tirar as consequências pastorais
desta doutrina conciliar, que recolhe uma antiga convicção da Igreja. Antes de mais
nada, deve-se dizer que, no anúncio do Evangelho, é necessário que haja uma proporção
adequada. Esta reconhece-se na frequência com que se mencionam alguns temas e nas
acentuações postas na pregação. Por exemplo, se um pároco, durante um ano litúrgico,
fala dez vezes sobre a temperança e apenas duas ou três vezes sobre a caridade ou
sobre a justiça, gera-se uma desproporção, acabando obscurecidas precisamente aquelas
virtudes que deveriam estar mais presentes na pregação e na catequese. E o mesmo acontece
quando se fala mais da lei que da graça, mais da Igreja que de Jesus Cristo, mais
do Papa que da Palavra de Deus.
39. Tal como existe uma unidade orgânica entre
as virtudes que impede de excluir qualquer uma delas do ideal cristão, assim também
nenhuma verdade é negada. Não é preciso mutilar a integridade da mensagem do Evangelho.
Além disso, cada verdade entende-se melhor se a colocarmos em relação com a totalidade
harmoniosa da mensagem cristã: e, neste contexto, todas as verdades têm a sua própria
importância e iluminam-se reciprocamente. Quando a pregação é fiel ao Evangelho, manifesta-se
com clareza a centralidade de algumas verdades e fica claro que a pregação moral cristã
não é uma ética estóica, é mais do que uma ascese, não é uma mera filosofia prática
nem um catálogo de pecados e erros. O Evangelho convida, antes de tudo, a responder
a Deus que nos ama e salva, reconhecendo-O nos outros e saindo de nós mesmos para
procurar o bem de todos. Este convite não há-de ser obscurecido em nenhuma circunstância!
Todas as virtudes estão ao serviço desta resposta de amor. Se tal convite não refulge
com vigor e fascínio, o edifício moral da Igreja corre o risco de se tornar um castelo
de cartas, sendo este o nosso pior perigo; é que, então, não estaremos propriamente
a anunciar o Evangelho, mas algumas acentuações doutrinais ou morais, que derivam
de certas opções ideológicas. A mensagem correrá o risco de perder o seu frescor e
já não ter «o perfume do Evangelho».
4. A missão que se encarna nas limitações
humanas
40. A Igreja, que é discípula missionária, tem necessidade de crescer
na sua interpretação da Palavra revelada e na sua compreensão da verdade. A tarefa
dos exegetas e teólogos ajuda a «amadurecer o juízo da Igreja». Embora de modo diferente,
fazem-no também as outras ciências. Referindo-se às ciências sociais, por exemplo,
João Paulo II disse que a Igreja presta atenção às suas contribuições «para obter
indicações concretas que a ajudem no cumprimento da sua missão de Magistério». Além
disso, dentro da Igreja, há inúmeras questões à volta das quais se indaga e reflecte
com grande liberdade. As diversas linhas de pensamento filosófico, teológico e pastoral,
se se deixam harmonizar pelo Espírito no respeito e no amor, podem fazer crescer a
Igreja, enquanto ajudam a explicitar melhor o tesouro riquíssimo da Palavra. A quantos
sonham com uma doutrina monolítica defendida sem nuances por todos, isto poderá parecer
uma dispersão imperfeita; mas a realidade é que tal variedade ajuda a manifestar e
desenvolver melhor os diversos aspectos da riqueza inesgotável do Evangelho.
41. Ao
mesmo tempo, as enormes e rápidas mudanças culturais exigem que prestemos constante
atenção ao tentar exprimir as verdades de sempre numa linguagem que permita reconhecer
a sua permanente novidade; é que, no depósito da doutrina cristã, «uma coisa é a substância
(...) e outra é a formulação que a reveste». Por vezes, mesmo ouvindo uma linguagem
totalmente ortodoxa, aquilo que os fiéis recebem, devido à linguagem que eles mesmos
utilizam e compreendem, é algo que não corresponde ao verdadeiro Evangelho de Jesus
Cristo. Com a santa intenção de lhes comunicar a verdade sobre Deus e o ser humano,
nalgumas ocasiões, damos-lhes um falso deus ou um ideal humano que não é verdadeiramente
cristão. Deste modo, somos fiéis a uma formulação, mas não transmitimos a substância.
Este é o risco mais grave. Lembremo-nos de que «a expressão da verdade pode ser multiforme.
E a renovação das formas de expressão torna-se necessária para transmitir ao homem
de hoje a mensagem evangélica no seu significado imutável».
42. Isto possui
uma grande relevância no anúncio do Evangelho, se temos verdadeiramente a peito fazer
perceber melhor a sua beleza e fazê-la acolher por todos. Em todo o caso, não poderemos
jamais tornar os ensinamentos da Igreja uma realidade facilmente compreensível e felizmente
apreciada por todos; a fé conserva sempre um aspecto de cruz, certa obscuridade que
não tira firmeza à sua adesão. Há coisas que se compreendem e apreciam só a partir
desta adesão que é irmã do amor, para além da clareza com que se possam compreender
as razões e os argumentos. Por isso, é preciso recordar-se de que cada ensinamento
da doutrina deve situar-se na atitude evangelizadora que desperte a adesão do coração
com a proximidade, o amor e o testemunho.
43. No seu constante discernimento,
a Igreja pode chegar também a reconhecer costumes próprios não directamente ligados
ao núcleo do Evangelho, alguns muito radicados no curso da história, que hoje já não
são interpretados da mesma maneira e cuja mensagem habitualmente não é percebida de
modo adequado. Podem até ser belos, mas agora não prestam o mesmo serviço à transmissão
do Evangelho. Não tenhamos medo de os rever! Da mesma forma, há normas ou preceitos
eclesiais que podem ter sido muito eficazes noutras épocas, mas já não têm a mesma
força educativa como canais de vida. São Tomás de Aquino sublinhava que os preceitos
dados por Cristo e pelos Apóstolos ao povo de Deus «são pouquíssimos». E, citando
Santo Agostinho, observava que os preceitos adicionados posteriormente pela Igreja
se devem exigir com moderação, «para não tornar pesada a vida aos fiéis» nem transformar
a nossa religião numa escravidão, quando «a misericórdia de Deus quis que fosse livre».
Esta advertência, feita há vários séculos, tem uma actualidade tremenda. Deveria ser
um dos critérios a considerar, quando se pensa numa reforma da Igreja e da sua pregação
que permita realmente chegar a todos.
44. Aliás, tanto os Pastores como todos
os fiéis que acompanham os seus irmãos na fé ou num caminho de abertura a Deus não
podem esquecer aquilo que ensina, com muita clareza, o Catecismo da Igreja Católica:
«A imputabilidade e responsabilidade dum acto podem ser diminuídas, e até anuladas,
pela ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições desordenadas
e outros factores psíquicos ou sociais». Portanto, sem diminuir o valor do ideal
evangélico, é preciso acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas
de crescimento das pessoas, que se vão construindo dia após dia. Aos sacerdotes, lembro
que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia
do Senhor que nos incentiva a praticar o bem possível. Um pequeno passo, no meio de
grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente
correcta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades. A todos
deve chegar a consolação e o estímulo do amor salvífico de Deus, que opera misteriosamente
em cada pessoa, para além dos seus defeitos e das suas quedas.
45. Vemos assim
que o compromisso evangelizador se move por entre as limitações da linguagem e das
circunstâncias. Procura comunicar cada vez melhor a verdade do Evangelho num contexto
determinado, sem renunciar à verdade, ao bem e à luz que pode dar quando a perfeição
não é possível. Um coração missionário está consciente destas limitações, fazendo-se
«fraco com os fracos (...) e tudo para todos» (1 Cor 9, 22). Nunca se fecha, nunca
se refugia nas próprias seguranças, nunca opta pela rigidez auto-defensiva. Sabe que
ele mesmo deve crescer na compreensão do Evangelho e no discernimento das sendas do
Espírito, e assim não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se
com a lama da estrada.
5. Uma mãe de coração aberto
46. A Igreja
«em saída» é uma Igreja com as portas abertas. Sair em direcção aos outros para chegar
às periferias humanas não significa correr pelo mundo sem direcção nem sentido. Muitas
vezes é melhor diminuir o ritmo, pôr de parte a ansiedade para olhar nos olhos e escutar,
ou renunciar às urgências para acompanhar quem ficou caído à beira do caminho. Às
vezes, é como o pai do filho pródigo, que continua com as portas abertas para, quando
este voltar, poder entrar sem dificuldade.
47. A Igreja é chamada a ser sempre
a casa aberta do Pai. Um dos sinais concretos desta abertura é ter, por todo o lado,
igrejas com as portas abertas. Assim, se alguém quiser seguir uma moção do Espírito
e se aproximar à procura de Deus, não esbarrará com a frieza duma porta fechada. Mas
há outras portas que também não se devem fechar: todos podem participar de alguma
forma na vida eclesial, todos podem fazer parte da comunidade, e nem sequer as portas
dos sacramentos se deveriam fechar por uma razão qualquer. Isto vale sobretudo quando
se trata daquele sacramento que é a «porta»: o Baptismo. A Eucaristia, embora constitua
a plenitude da vida sacramental, não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio
generoso e um alimento para os fracos. Estas convicções têm também consequências pastorais,
que somos chamados a considerar com prudência e audácia. Muitas vezes agimos como
controladores da graça e não como facilitadores. Mas a Igreja não é uma alfândega;
é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fadigosa.
48. Se
a Igreja inteira assume este dinamismo missionário, há-de chegar a todos, sem excepção.
Mas, a quem deveria privilegiar? Quando se lê o Evangelho, encontramos uma orientação
muito clara: não tanto aos amigos e vizinhos ricos, mas sobretudo aos pobres e aos
doentes, àqueles que muitas vezes são desprezados e esquecidos, «àqueles que não têm
com que te retribuir» (Lc 14, 14). Não devem subsistir dúvidas nem explicações que
debilitem esta mensagem claríssima. Hoje e sempre, «os pobres são os destinatários
privilegiados do Evangelho», e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal
do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel
entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais sozinhos!
49. Saiamos,
saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Repito aqui, para toda a Igreja,
aquilo que muitas vezes disse aos sacerdotes e aos leigos de Buenos Aires: prefiro
uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja
enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero
uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões
e procedimentos. Se alguma coisa nos deve santamente inquietar e preocupar a nossa
consciência é que haja tantos irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação
da amizade com Jesus Cristo, sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte
de sentido e de vida. Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de
nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa protecção, nas normas que nos
transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto
lá fora há uma multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar: «Dai-lhes vós mesmos
de comer» (Mc 6, 37).
Capítulo II NA CRISE DO COMPROMISSO COMUNITÁRIO
50. Antes
de falar de algumas questões fundamentais relativas à acção evangelizadora, convém
recordar brevemente o contexto em que temos de viver e agir. É habitual hoje falar-se
dum «excesso de diagnóstico», que nem sempre é acompanhado por propostas resolutivas
e realmente aplicáveis. Por outro lado, também não nos seria de grande proveito um
olhar puramente sociológico, que tivesse a pretensão, com a sua metodologia, de abraçar
toda a realidade de maneira supostamente neutra e asséptica. O que quero oferecer
situa-se mais na linha dum discernimento evangélico. É o olhar do discípulo missionário
que «se nutre da luz e da força do Espírito Santo».
51. Não é função do Papa
oferecer uma análise detalhada e completa da realidade contemporânea, mas animo todas
as comunidades a «uma capacidade sempre vigilante de estudar os sinais dos tempos».
Trata-se duma responsabilidade grave, pois algumas realidades hodiernas, se não encontrarem
boas soluções, podem desencadear processos de desumanização tais que será difícil
depois retroceder. É preciso esclarecer o que pode ser um fruto do Reino e também
o que atenta contra o projecto de Deus. Isto implica não só reconhecer e interpretar
as moções do espírito bom e do espírito mau, mas também – e aqui está o ponto decisivo
– escolher as do espírito bom e rejeitar as do espírito mau. Pressuponho as várias
análises que ofereceram os outros documentos do Magistério universal, bem como as
propostas pelos episcopados regionais e nacionais. Nesta Exortação, pretendo debruçar-me,
brevemente e numa perspectiva pastoral, apenas sobre alguns aspectos da realidade
que podem deter ou enfraquecer os dinamismos de renovação missionária da Igreja, seja
porque afectam a vida e a dignidade do povo de Deus, seja porque incidem sobre os
sujeitos que mais directamente participam nas instituições eclesiais e nas tarefas
de evangelização.
1. Alguns desafios do mundo actual
52. A humanidade
vive, neste momento, uma viragem histórica, que podemos constatar nos progressos que
se verificam em vários campos. São louváveis os sucessos que contribuem para o bem-estar
das pessoas, por exemplo, no âmbito da saúde, da educação e da comunicação. Todavia
não podemos esquecer que a maior parte dos homens e mulheres do nosso tempo vive o
seu dia a dia precariamente, com funestas consequências. Aumentam algumas doenças.
O medo e o desespero apoderam-se do coração de inúmeras pessoas, mesmo nos chamados
países ricos. A alegria de viver frequentemente se desvanece; crescem a falta de respeito
e a violência, a desigualdade social torna-se cada vez mais patente. É preciso lutar
para viver, e muitas vezes viver com pouca dignidade. Esta mudança de época foi causada
pelos enormes saltos qualitativos, quantitativos, velozes e acumulados que se verificam
no progresso científico, nas inovações tecnológicas e nas suas rápidas aplicações
em diversos âmbitos da natureza e da vida. Estamos na era do conhecimento e da informação,
fonte de novas formas dum poder muitas vezes anónimo.
Não a uma economia da
exclusão
53. Assim como o mandamento «não matar» põe um limite claro para assegurar
o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer «não a uma economia da exclusão
e da desigualdade social». Esta economia mata. Não é possível que a morte por enregelamento
dum idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa.
Isto é exclusão. Não se pode tolerar mais o facto de se lançar comida no lixo, quando
há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social. Hoje, tudo entra no jogo da
competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. Em consequência
desta situação, grandes massas da população vêem-se excluídas e marginalizadas: sem
trabalho, sem perspectivas, num beco sem saída. O ser humano é considerado, em si
mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora. Assim teve início
a cultura do «descartável», que aliás chega a ser promovida. Já não se trata simplesmente
do fenómeno de exploração e opressão, mas duma realidade nova: com a exclusão, fere-se,
na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas,
na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são «explorados»,
mas resíduos, «sobras».
54. Neste contexto, alguns defendem ainda as teorias
da «recaída favorável» que pressupõem que todo o crescimento económico, favorecido
pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e inclusão social
no mundo. Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos factos, exprime uma confiança
vaga e ingénua na bondade daqueles que detêm o poder económico e nos mecanismos sacralizados
do sistema económico reinante. Entretanto, os excluídos continuam a esperar. Para
se poder apoiar um estilo de vida que exclui os outros ou mesmo entusiasmar-se com
este ideal egoísta, desenvolveu-se uma globalização da indiferença. Quase sem nos
dar conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores alheios, já
não choramos à vista do drama dos outros, nem nos interessamos por cuidar deles, como
se tudo fosse uma responsabilidade de outrem, que não nos incumbe. A cultura do bem-estar
anestesia-nos, a ponto de perdermos a serenidade se o mercado oferece algo que ainda
não compramos, enquanto todas estas vidas ceifadas por falta de possibilidades nos
parecem um mero espectáculo que não nos incomoda de forma alguma.
Não à nova
idolatria do dinheiro
55. Uma das causas desta situação está na relação estabelecida
com o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e as nossas
sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem,
há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. Criámos
novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32, 1-35) encontrou uma
nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura duma economia sem rosto
e sem um objectivo verdadeiramente humano. A crise mundial, que investe as finanças
e a economia, põe a descoberto os seus próprios desequilíbrios e sobretudo a grave
carência duma orientação antropológica que reduz o ser humano apenas a uma das suas
necessidades: o consumo.
56. Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente,
os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal
desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados
e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controle dos Estados, encarregados
de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes
virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras.
Além disso, a dívida e os respectivos juros afastam os países das possibilidades viáveis
da sua economia, e os cidadãos do seu real poder de compra. A tudo isto vem juntar-se
uma corrupção ramificada e uma evasão fiscal egoísta, que assumiram dimensões mundiais.
A ambição do poder e do ter não conhece limites. Neste sistema que tende a fagocitar
tudo para aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja frágil, como o meio
ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado divinizado, transformados em
regra absoluta.
Não a um dinheiro que governa em vez de servir
57. Por
detrás desta atitude, escondem-se a rejeição da ética e a recusa de Deus. Para a ética,
olha-se habitualmente com um certo desprezo sarcástico; é considerada contraproducente,
demasiado humana, porque relativiza o dinheiro e o poder. É sentida como uma ameaça,
porque condena a manipulação e degradação da pessoa. Em última instância, a ética
leva a Deus que espera uma resposta comprometida que está fora das categorias do mercado.
Para estas, se absolutizadas, Deus é incontrolável, não manipulável e até mesmo perigoso,
na medida em que chama o ser humano à sua plena realização e à independência de qualquer
tipo de escravidão. A ética – uma ética não ideologizada – permite criar um equilíbrio
e uma ordem social mais humana. Neste sentido, animo os peritos financeiros e os governantes
dos vários países a considerarem as palavras dum sábio da antiguidade: «Não fazer
os pobres participar dos seus próprios bens é roubá-los e tirar-lhes a vida. Não são
nossos, mas deles, os bens que aferrolhamos».
58. Uma reforma financeira que
tivesse em conta a ética exigiria uma vigorosa mudança de atitudes por parte dos dirigentes
políticos, a quem exorto a enfrentar este desafio com determinação e clarividência,
sem esquecer naturalmente a especificidade de cada contexto. O dinheiro deve servir,
e não governar! O Papa ama a todos, ricos e pobres, mas tem a obrigação, em nome de
Cristo, de lembrar que os ricos devem ajudar os pobres, respeitá-los e promovê-los.
Exorto-vos a uma solidariedade desinteressada e a um regresso da economia e das finanças
a uma ética propícia ao ser humano.
Não à desigualdade social que gera violência
59. Hoje,
em muitas partes, reclama-se maior segurança. Mas, enquanto não se eliminar a exclusão
e a desigualdade dentro da sociedade e entre os vários povos será impossível desarreigar
a violência. Acusam-se da violência os pobres e as populações mais pobres, mas, sem
igualdade de oportunidades, as várias formas de agressão e de guerra encontrarão um
terreno fértil que, mais cedo ou mais tarde, há-de provocar a explosão. Quando a sociedade
– local, nacional ou mundial – abandona na periferia uma parte de si mesma, não há
programas políticos, nem forças da ordem ou serviços secretos que possam garantir
indefinidamente a tranquilidade. Isto não acontece apenas porque a desigualdade social
provoca a reacção violenta de quantos são excluídos do sistema, mas porque o sistema
social e económico é injusto na sua raiz. Assim como o bem tende a difundir-se, assim
também o mal consentido, que é a injustiça, tende a expandir a sua força nociva e
a minar, silenciosamente, as bases de qualquer sistema político e social, por mais
sólido que pareça. Se cada acção tem consequências, um mal embrenhado nas estruturas
duma sociedade sempre contém um potencial de dissolução e de morte. É o mal cristalizado
nas estruturas sociais injustas, a partir do qual não podemos esperar um futuro melhor.
Estamos longe do chamado «fim da história», já que as condições dum desenvolvimento
sustentável e pacífico ainda não estão adequadamente implantadas e realizadas.
60. Os
mecanismos da economia actual promovem uma exacerbação do consumo, mas sabe-se que
o consumismo desenfreado, aliado à desigualdade social, é duplamente daninho para
o tecido social. Assim, mais cedo ou mais tarde, a desigualdade social gera uma violência
que as corridas armamentistas não resolvem nem poderão resolver jamais. Servem apenas
para tentar enganar aqueles que reclamam maior segurança, como se hoje não se soubesse
que as armas e a repressão violenta, mais do que dar solução, criam novos e piores
conflitos. Alguns comprazem-se simplesmente em culpar, dos próprios males, os pobres
e os países pobres, com generalizações indevidas, e pretendem encontrar a solução
numa «educação» que os tranquilize e transforme em seres domesticados e inofensivos.
Isto torna-se ainda mais irritante, quando os excluídos vêem crescer este câncer social
que é a corrupção profundamente radicada em muitos países – nos seus Governos, empresários
e instituições – seja qual for a ideologia política dos governantes.
Alguns
desafios culturais
61. Evangelizamos também procurando enfrentar os diferentes
desafios que se nos podem apresentar. Às vezes, estes manifestam-se em verdadeiros
ataques à liberdade religiosa ou em novas situações de perseguição aos cristãos, que,
nalguns países, atingiram níveis alarmantes de ódio e violência. Em muitos lugares,
trata-se mais de uma generalizada indiferença relativista, relacionada com a desilusão
e a crise das ideologias que se verificou como reacção a tudo o que pareça totalitário.
Isto não prejudica só a Igreja, mas a vida social em geral. Reconhecemos que, numa
cultura onde cada um pretende ser portador duma verdade subjectiva própria, torna-se
difícil que os cidadãos queiram inserir-se num projecto comum que vai além dos benefícios
e desejos pessoais.
62. Na cultura dominante, ocupa o primeiro lugar aquilo
que é exterior, imediato, visível, rápido, superficial, provisório. O real cede o
lugar à aparência. Em muitos países, a globalização comportou uma acelerada deterioração
das raízes culturais com a invasão de tendências pertencentes a outras culturas, economicamente
desenvolvidas mas eticamente debilitadas. Assim se exprimiram, em distintos Sínodos,
os Bispos de vários continentes. Há alguns anos, os Bispos da África, por exemplo,
retomando a Encíclica Sollicitudo rei socialis, assinalaram que muitas vezes se quer
transformar os países africanos em meras «peças de um mecanismo, partes de uma engrenagem
gigantesca. Isto verifica-se com frequência também no domínio dos meios de comunicação
social, os quais, sendo na sua maior parte geridos por centros situados na parte norte
do mundo, nem sempre têm na devida conta as prioridades e os problemas próprios desses
países e não respeitam a sua fisionomia cultural». De igual modo, os Bispos da Ásia
sublinharam «as influências externas que estão a penetrar nas culturas asiáticas.
Vão surgindo formas novas de comportamento resultantes da orientação dos mass-media
(…). Em consequência disso, os aspectos negativos dos mass-media e espectáculos estão
a ameaçar os valores tradicionais».
63. A fé católica de muitos povos encontra-se
hoje perante o desafio da proliferação de novos movimentos religiosos, alguns tendentes
ao fundamentalismo e outros que parecem propor uma espiritualidade sem Deus. Isto,
por um lado, é o resultado duma reacção humana contra a sociedade materialista, consumista
e individualista e, por outro, um aproveitamento das carências da população que vive
nas periferias e zonas pobres, sobrevive no meio de grandes preocupações humanas e
procura soluções imediatas para as suas necessidades. Estes movimentos religiosos,
que se caracterizam pela sua penetração subtil, vêm colmar, dentro do individualismo
reinante, um vazio deixado pelo racionalismo secularista. Além disso, é necessário
reconhecer que, se uma parte do nosso povo baptizado não sente a sua pertença à Igreja,
isso deve-se também à existência de estruturas com clima pouco acolhedor nalgumas
das nossas paróquias e comunidades, ou à atitude burocrática com que se dá resposta
aos problemas, simples ou complexos, da vida dos nossos povos. Em muitas partes, predomina
o aspecto administrativo sobre o pastoral, bem como uma sacramentalização sem outras
formas de evangelização.
64. O processo de secularização tende a reduzir a
fé e a Igreja ao âmbito privado e íntimo. Além disso, com a negação de toda a transcendência,
produziu-se uma crescente deformação ética, um enfraquecimento do sentido do pecado
pessoal e social e um aumento progressivo do relativismo; e tudo isso provoca uma
desorientação generalizada, especialmente na fase tão vulnerável às mudanças da adolescência
e juventude. Como justamente observam os Bispos dos Estados Unidos da América, enquanto
a Igreja insiste na existência de normas morais objectivas, válidas para todos, «há
aqueles que apresentam esta doutrina como injusta, ou seja, contrária aos direitos
humanos básicos. Tais alegações brotam habitualmente de uma forma de relativismo moral,
que se une consistentemente a uma confiança nos direitos absolutos dos indivíduos.
Nesta perspectiva, a Igreja é sentida como se estivesse promovendo um convencionalismo
particular e interferisse com a liberdade individual». Vivemos numa sociedade da informação
que nos satura indiscriminadamente de dados, todos postos ao mesmo nível, e acaba
por nos conduzir a uma tremenda superficialidade no momento de enquadrar as questões
morais. Por conseguinte, torna-se necessária uma educação que ensine a pensar criticamente
e ofereça um caminho de amadurecimento nos valores.
65. Apesar de toda a corrente
secularista que invade a sociedade, em muitos países – mesmo onde o cristianismo está
em minoria – a Igreja Católica é uma instituição credível perante a opinião pública,
fiável no que diz respeito ao âmbito da solidariedade e preocupação pelos mais indigentes.
Em repetidas ocasiões, ela serviu de medianeira na solução de problemas que afectam
a paz, a concórdia, o meio ambiente, a defesa da vida, os direitos humanos e civis,
etc. E como é grande a contribuição das escolas e das universidades católicas no mundo
inteiro! E é muito bom que assim seja. Mas, quando levantamos outras questões que
suscitam menor acolhimento público, custa-nos a demonstrar que o fazemos por fidelidade
às mesmas convicções sobre a dignidade da pessoa humana e do bem comum.
66. A
família atravessa uma crise cultural profunda, como todas as comunidades e vínculos
sociais. No caso da família, a fragilidade dos vínculos reveste-se de especial gravidade,
porque se trata da célula básica da sociedade, o espaço onde se aprende a conviver
na diferença e a pertencer aos outros e onde os pais transmitem a fé aos seus filhos.
O matrimónio tende a ser visto como mera forma de gratificação afectiva, que se pode
constituir de qualquer maneira e modificar-se de acordo com a sensibilidade de cada
um. Mas a contribuição indispensável do matrimónio à sociedade supera o nível da afectividade
e o das necessidades ocasionais do casal. Como ensinam os Bispos franceses, não provém
«do sentimento amoroso, efémero por definição, mas da profundidade do compromisso
assumido pelos esposos que aceitam entrar numa união de vida total».
67. O
individualismo pós-moderno e globalizado favorece um estilo de vida que debilita o
desenvolvimento e a estabilidade dos vínculos entre as pessoas e distorce os vínculos
familiares. A acção pastoral deve mostrar ainda melhor que a relação com o nosso Pai
exige e incentiva uma comunhão que cura, promove e fortalece os vínculos interpessoais.
Enquanto no mundo, especialmente nalguns países, se reacendem várias formas de guerras
e conflitos, nós, cristãos, insistimos na proposta de reconhecer o outro, de curar
as feridas, de construir pontes, de estreitar laços e de nos ajudarmos «a carregar
as cargas uns dos outros» (Gal 6, 2). Além disso, vemos hoje surgir muitas formas
de agregação para a defesa de direitos e a consecução de nobres objectivos. Deste
modo se manifesta uma sede de participação de numerosos cidadãos, que querem ser construtores
do desenvolvimento social e cultural.
Desafios da inculturação da fé
68. O
substrato cristão dalguns povos – sobretudo ocidentais – é uma realidade viva. Aqui
encontramos, especialmente nos mais necessitados, uma reserva moral que guarda valores
de autêntico humanismo cristão. Um olhar de fé sobre a realidade não pode deixar de
reconhecer o que semeia o Espírito Santo. Significaria não ter confiança na sua acção
livre e generosa pensar que não existem autênticos valores cristãos, onde uma grande
parte da população recebeu o Baptismo e exprime de variadas maneiras a sua fé e solidariedade
fraterna. Aqui há que reconhecer muito mais que «sementes do Verbo», visto que se
trata duma autêntica fé católica com modalidades próprias de expressão e de pertença
à Igreja. Não convém ignorar a enorme importância que tem uma cultura marcada pela
fé, porque, não obstante os seus limites, esta cultura evangelizada tem, contra os
ataques do secularismo actual, muitos mais recursos do que a mera soma dos crentes.
Uma cultura popular evangelizada contém valores de fé e solidariedade que podem provocar
o desenvolvimento duma sociedade mais justa e crente, e possui uma sabedoria peculiar
que devemos saber reconhecer com olhar agradecido.
69. Há uma necessidade
imperiosa de evangelizar as culturas para inculturar o Evangelho. Nos países de tradição
católica, tratar-se-á de acompanhar, cuidar e fortalecer a riqueza que já existe e,
nos países de outras tradições religiosas ou profundamente secularizados, há que procurar
novos processos de evangelização da cultura, ainda que suponham projectos a longo
prazo. Entretanto não podemos ignorar que há sempre uma chamada ao crescimento: toda
a cultura e todo o grupo social necessitam de purificação e amadurecimento. No caso
das culturas populares de povos católicos, podemos reconhecer algumas fragilidades
que precisam ainda de ser curadas pelo Evangelho: o machismo, o alcoolismo, a violência
doméstica, uma escassa participação na Eucaristia, crenças fatalistas ou supersticiosas
que levam a recorrer à bruxaria, etc. Mas o melhor ponto de partida para curar e ver-se
livre de tais fragilidades é precisamente a piedade popular.
70. Certo é também
que, às vezes, se dá maior realce a formas exteriores das tradições de grupos concretos
ou a supostas revelações privadas, que se absolutizam, do que ao impulso da piedade
cristã. Há certo cristianismo feito de devoções – próprio duma vivência individual
e sentimental da fé – que, na realidade, não corresponde a uma autêntica «piedade
popular». Alguns promovem estas expressões sem se preocupar com a promoção social
e a formação dos fiéis, fazendo-o nalguns casos para obter benefícios económicos ou
algum poder sobre os outros. Também não podemos ignorar que, nas últimas décadas,
se produziu uma ruptura na transmissão geracional da fé cristã no povo católico. É
inegável que muitos se sentem desiludidos e deixam de se identificar com a tradição
católica, que cresceu o número de pais que não baptizam os seus filhos nem os ensinam
a rezar, e que há um certo êxodo para outras comunidades de fé. Algumas causas desta
ruptura são a falta de espaços de diálogo familiar, a influência dos meios de comunicação,
o subjectivismo relativista, o consumismo desenfreado que o mercado incentiva, a falta
de cuidado pastoral pelos mais pobres, a inexistência dum acolhimento cordial nas
nossas instituições, e a dificuldade que sentimos em recriar a adesão mística da fé
num cenário religioso pluralista.
Desafios das culturas urbanas
71. A
nova Jerusalém, a cidade santa (cf. Ap 21, 2-4), é a meta para onde peregrina toda
a humanidade. É interessante que a revelação nos diga que a plenitude da humanidade
e da história se realiza numa cidade. Precisamos de identificar a cidade a partir
dum olhar contemplativo, isto é, um olhar de fé que descubra Deus que habita nas suas
casas, nas suas ruas, nas suas praças. A presença de Deus acompanha a busca sincera
que indivíduos e grupos efectuam para encontrar apoio e sentido para a sua vida. Ele
vive entre os citadinos promovendo a solidariedade, a fraternidade, o desejo de bem,
de verdade, de justiça. Esta presença não precisa de ser criada, mas descoberta, desvendada.
Deus não Se esconde de quantos O buscam com coração sincero, ainda que o façam tacteando,
de maneira imprecisa e incerta.
72. Na cidade, o elemento religioso é mediado
por diferentes estilos de vida, por costumes ligados a um sentido do tempo, do território
e das relações que difere do estilo das populações rurais. Na vida quotidiana, muitas
vezes os citadinos lutam para sobreviver e, nesta luta, esconde-se um sentido profundo
da existência que habitualmente comporta também um profundo sentido religioso. Precisamos
de o contemplar para conseguirmos um diálogo parecido com o que o Senhor teve com
a Samaritana, junto do poço onde ela procurava saciar a sua sede (cf. Jo 4, 7-26).
73. Novas
culturas continuam a formar-se nestas enormes geografias humanas onde o cristão já
não costuma ser promotor ou gerador de sentido, mas recebe delas outras linguagens,
símbolos, mensagens e paradigmas que oferecem novas orientações de vida, muitas vezes
em contraste com o Evangelho de Jesus. Uma cultura inédita palpita e está em elaboração
na cidade. O Sínodo constatou que as transformações destas grandes áreas e a cultura
que exprimem são, hoje, um lugar privilegiado da nova evangelização. Isto requer imaginar
espaços de oração e de comunhão com características inovadoras, mais atraentes e significativas
para as populações urbanas. Os ambientes rurais, devido à influência dos mass-media,
não estão imunes destas transformações culturais que também operam mudanças significativas
nas suas formas de vida.
74. Torna-se necessária uma evangelização que ilumine
os novos modos de se relacionar com Deus, com os outros e com o ambiente, e que suscite
os valores fundamentais. É necessário chegar aonde são concebidas as novas histórias
e paradigmas, alcançar com a Palavra de Jesus os núcleos mais profundos da alma das
cidades. Não se deve esquecer que a cidade é um âmbito multicultural. Nas grandes
cidades, pode observar-se uma trama em que grupos de pessoas compartilham as mesmas
formas de sonhar a vida e ilusões semelhantes, constituindo-se em novos sectores humanos,
em territórios culturais, em cidades invisíveis. Na realidade, convivem variadas formas
culturais, mas exercem muitas vezes práticas de segregação e violência. A Igreja é
chamada a ser servidora dum diálogo difícil. Enquanto há citadinos que conseguem os
meios adequados para o desenvolvimento da vida pessoal e familiar, muitíssimos são
também os «não-citadinos», os «meio-citadinos» ou os «resíduos urbanos». A cidade
dá origem a uma espécie de ambivalência permanente, porque, ao mesmo tempo que oferece
aos seus habitantes infinitas possibilidades, interpõe também numerosas dificuldades
ao pleno desenvolvimento da vida de muitos. Esta contradição provoca sofrimentos lancinantes.
Em muitas partes do mundo, as cidades são cenário de protestos em massa, onde milhares
de habitantes reclamam liberdade, participação, justiça e várias reivindicações que,
se não forem adequadamente interpretadas, nem pela força poderão ser silenciadas.
75. Não
podemos ignorar que, nas cidades, facilmente se desenvolve o tráfico de drogas e de
pessoas, o abuso e a exploração de menores, o abandono de idosos e doentes, várias
formas de corrupção e crime. Ao mesmo tempo, o que poderia ser um precioso espaço
de encontro e solidariedade, transforma-se muitas vezes num lugar de retraimento e
desconfiança mútua. As casas e os bairros constroem-se mais para isolar e proteger
do que para unir e integrar. A proclamação do Evangelho será uma base para restabelecer
a dignidade da vida humana nestes contextos, porque Jesus quer derramar nas cidades
vida em abundância (cf. Jo 10, 10). O sentido unitário e completo da vida humana proposto
pelo Evangelho é o melhor remédio para os males urbanos, embora devamos reparar que
um programa e um estilo uniformes e rígidos de evangelização não são adequados para
esta realidade. Mas viver a fundo a realidade humana e inserir-se no coração dos desafios
como fermento de testemunho, em qualquer cultura, em qualquer cidade, melhora o cristão
e fecunda a cidade.
2. Tentações dos agentes pastorais
76. Sinto
uma enorme gratidão pela tarefa de quantos trabalham na Igreja. Não quero agora deter-me
na exposição das actividades dos vários agentes pastorais, desde os Bispos até ao
mais simples e ignorado dos serviços eclesiais. Prefiro reflectir sobre os desafios
que todos eles enfrentam no meio da cultura globalizada actual. Mas, antes de tudo
e como dever de justiça, tenho a dizer que é enorme a contribuição da Igreja no mundo
actual. A nossa tristeza e vergonha pelos pecados de alguns membros da Igreja, e pelos
próprios, não devem fazer esquecer os inúmeros cristãos que dão a vida por amor: ajudam
tantas pessoas seja a curar-se seja a morrer em paz em hospitais precários, acompanham
as pessoas que caíram escravas de diversos vícios nos lugares mais pobres da terra,
prodigalizam-se na educação de crianças e jovens, cuidam de idosos abandonados por
todos, procuram comunicar valores em ambientes hostis, e dedicam-se de muitas outras
maneiras que mostram o imenso amor à humanidade inspirado por Deus feito homem. Agradeço
o belo exemplo que me dão tantos cristãos que oferecem a sua vida e o seu tempo com
alegria. Este testemunho faz-me muito bem e me apoia na minha aspiração pessoal de
superar o egoísmo para uma dedicação maior.
77. Apesar disso, como filhos desta
época, todos estamos de algum modo sob o influxo da cultura globalizada actual, que,
sem deixar de apresentar valores e novas possibilidades, pode também limitar-nos,
condicionar-nos e até mesmo combalir-nos. Reconheço que precisamos de criar espaços
apropriados para motivar e sanar os agentes pastorais, «lugares onde regenerar a sua
fé em Jesus crucificado e ressuscitado, onde compartilhar as próprias questões mais
profundas e as preocupações quotidianas, onde discernir em profundidade e com critérios
evangélicos sobre a própria existência e experiência, com o objectivo de orientar
para o bem e a beleza as próprias opções individuais e sociais». Ao mesmo tempo, quero
chamar a atenção para algumas tentações que afectam, particularmente nos nossos dias,
os agentes pastorais.
Sim ao desafio duma espiritualidade missionária
78. Hoje
nota-se em muitos agentes pastorais, mesmo pessoas consagradas, uma preocupação exacerbada
pelos espaços pessoais de autonomia e relaxamento, que leva a viver os próprios deveres
como mero apêndice da vida, como se não fizessem parte da própria identidade. Ao mesmo
tempo, a vida espiritual confunde-se com alguns momentos religiosos que proporcionam
algum alívio, mas não alimentam o encontro com os outros, o compromisso no mundo,
a paixão pela evangelização. Assim, é possível notar em muitos agentes evangelizadores
– não obstante rezem – uma acentuação do individualismo, uma crise de identidade e
um declínio do fervor. São três males que se alimentam entre si.
79. A cultura
mediática e alguns ambientes intelectuais transmitem, às vezes, uma acentuada desconfiança
quanto à mensagem da Igreja, e um certo desencanto. Em consequência disso, embora
rezando, muitos agentes pastorais desenvolvem uma espécie de complexo de inferioridade
que os leva a relativizar ou esconder a sua identidade cristã e as suas convicções.
Gera-se então um círculo vicioso, porque assim não se sentem felizes com o que são
nem com o que fazem, não se sentem identificados com a missão evangelizadora, e isto
debilita a entrega. Acabam assim por sufocar a alegria da missão numa espécie de obsessão
por serem como todos os outros e terem o que possuem os demais. Deste modo, a tarefa
da evangelização torna-se forçada e dedica-se-lhe pouco esforço e um tempo muito limitado.
80. Nos
agentes pastorais, independentemente do estilo espiritual ou da linha de pensamento
que possam ter, desenvolve-se um relativismo ainda mais perigoso que o doutrinal.
Tem a ver com as opções mais profundas e sinceras que determinam uma forma de vida
concreta. Este relativismo prático é agir como se Deus não existisse, decidir como
se os pobres não existissem, sonhar como se os outros não existissem, trabalhar como
se aqueles que não receberam o anúncio não existissem. É impressionante como até aqueles
que aparentemente dispõem de sólidas convicções doutrinais e espirituais acabam, muitas
vezes, por cair num estilo de vida que os leva a agarrarem-se a seguranças económicas
ou a espaços de poder e de glória humana que se buscam por qualquer meio, em vez de
dar a vida pelos outros na missão. Não nos deixemos roubar o entusiasmo missionário!
Não
à acédia egoísta
81. Quando mais precisamos dum dinamismo missionário que leve
sal e luz ao mundo, muitos leigos temem que alguém os convide a realizar alguma tarefa
apostólica e procuram fugir de qualquer compromisso que lhes possa roubar o tempo
livre. Hoje, por exemplo, tornou-se muito difícil nas paróquias conseguir catequistas
que estejam preparados e perseverem no seu dever por vários anos. Mas algo parecido
acontece com os sacerdotes que se preocupam obsessivamente com o seu tempo pessoal.
Isto, muitas vezes, fica-se a dever a que as pessoas sentem imperiosamente necessidade
de preservar os seus espaços de autonomia, como se uma tarefa de evangelização fosse
um veneno perigoso e não uma resposta alegre ao amor de Deus que nos convoca para
a missão e nos torna completos e fecundos. Alguns resistem a provar até ao fundo o
gosto da missão e acabam mergulhados numa acédia paralisadora.
82. O problema
não está sempre no excesso de actividades, mas sobretudo nas actividades mal vividas,
sem as motivações adequadas, sem uma espiritualidade que impregne a acção e a torne
desejável. Daí que as obrigações cansem mais do que é razoável, e às vezes façam adoecer.
Não se trata duma fadiga feliz, mas tensa, gravosa, desagradável e, em definitivo,
não assumida. Esta acédia pastoral pode ter origens diversas: alguns caem nela por
sustentarem projectos irrealizáveis e não viverem de bom grado o que poderiam razoavelmente
fazer; outros, por não aceitarem a custosa evolução dos processos e querem que tudo
caia do Céu; outros, por se apegarem a alguns projectos ou a sonhos de sucesso cultivados
pela sua vaidade; outros, por terem perdido o contacto real com o povo, numa despersonalização
da pastoral que leva a prestar mais atenção à organização do que às pessoas, acabando
assim por se entusiasmarem mais com a «tabela de marcha» do que com a própria marcha;
outros ainda caem na acédia, por não saberem esperar e quererem dominar o ritmo da
vida. A ânsia hodierna de chegar a resultados imediatos faz com que os agentes pastorais
não tolerem facilmente tudo o que signifique alguma contradição, um aparente fracasso,
uma crítica, uma cruz.
83. Assim se gera a maior ameaça, que «é o pragmatismo
cinzento da vida quotidiana da Igreja, no qual aparentemente tudo procede dentro da
normalidade, mas na realidade a fé vai-se deteriorando e degenerando na mesquinhez».
Desenvolve-se a psicologia do túmulo, que pouco a pouco transforma os cristãos em
múmias de museu. Desiludidos com a realidade, com a Igreja ou consigo mesmos, vivem
constantemente tentados a apegar-se a uma tristeza melosa, sem esperança, que se apodera
do coração como «o mais precioso elixir do demónio». Chamados para iluminar e comunicar
vida, acabam por se deixar cativar por coisas que só geram escuridão e cansaço interior
e corroem o dinamismo apostólico. Por tudo isto, permiti que insista: Não deixemos
que nos roubem a alegria da evangelização!
Não ao pessimismo estéril
84. A
alegria do Evangelho é tal que nada e ninguém no-la poderá tirar (cf. Jo 16, 22).
Os males do nosso mundo – e os da Igreja – não deveriam servir como desculpa para
reduzir a nossa entrega e o nosso ardor. Vejamo-los como desafios para crescer. Além
disso, o olhar crente é capaz de reconhecer a luz que o Espírito Santo sempre irradia
no meio da escuridão, sem esquecer que, «onde abundou o pecado, superabundou a graça»
(Rm 5, 20). A nossa fé é desafiada a entrever o vinho em que a água pode ser transformada,
e a descobrir o trigo que cresce no meio do joio. Cinquenta anos depois do Concílio
Vaticano II, apesar de nos entristecerem as misérias do nosso tempo e estarmos longe
de optimismos ingénuos, um maior realismo não deve significar menor confiança no Espírito
nem menor generosidade. Neste sentido, podemos voltar a ouvir as palavras pronunciadas
pelo Beato João XXIII naquele memorável 11 de Outubro de 1962: «Chegam-nos aos ouvidos
insinuações de almas, ardorosas sem dúvida no zelo, mas não dotadas de grande sentido
de discrição e moderação. Nos tempos actuais, não vêem senão prevaricações e ruínas.
[...] Mas a nós parece-nos que devemos discordar desses profetas de desgraças, que
anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo.
Na ordem presente das coisas, a misericordiosa Providência está-nos levantando para
uma ordem de relações humanas que, por obra dos homens e a maior parte das vezes para
além do que eles esperam, se encaminham para o cumprimento dos seus desígnios superiores
e inesperados, e tudo, mesmo as adversidades humanas, converge para o bem da Igreja».
85. Uma das tentações mais sérias que sufoca o fervor e a ousadia é a sensação
de derrota que nos transforma em pessimistas lamurientos e desencantados com cara
de vinagre. Ninguém pode empreender uma luta, se de antemão não está plenamente confiado
no triunfo. Quem começa sem confiança, perdeu de antemão metade da batalha e enterra
os seus talentos. Embora com a dolorosa consciência das próprias fraquezas, há que
seguir em frente, sem se dar por vencido, e recordar o que disse o Senhor a São Paulo:
«Basta-te a minha graça, porque a força manifesta-se na fraqueza» (2 Cor 12, 9). O
triunfo cristão é sempre uma cruz, mas cruz que é, simultaneamente, estandarte de
vitória, que se empunha com ternura batalhadora contra as investidas do mal. O mau
espírito da derrota é irmão da tentação de separar prematuramente o trigo do joio,
resultado de uma desconfiança ansiosa e egocêntrica.
86. É verdade que, nalguns
lugares, se produziu uma «desertificação» espiritual, fruto do projecto de sociedades
que querem construir sem Deus ou que destroem as suas raízes cristãs. Lá, «o mundo
cristão está a tornar-se estéril e se esgota como uma terra excessivamente desfrutada
que se transforma em poeira». Noutros países, a resistência violenta ao cristianismo
obriga os cristãos a viverem a sua fé às escondidas no país que amam. Esta é outra
forma muito triste de deserto. E a própria família ou o lugar de trabalho podem ser
também o tal ambiente árido, onde há que conservar a fé e procurar irradiá-la. Mas
«é precisamente a partir da experiência deste deserto, deste vazio, que podemos redescobrir
a alegria de crer, a sua importância vital para nós, homens e mulheres. No deserto,
é possível redescobrir o valor daquilo que é essencial para a vida; assim sendo, no
mundo de hoje, há inúmeros sinais da sede de Deus, do sentido último da vida, ainda
que muitas vezes expressos implícita ou negativamente. E, no deserto, existe sobretudo
a necessidade de pessoas de fé que, com suas próprias vidas, indiquem o caminho para
a Terra Prometida, mantendo assim viva a esperança». Em todo o caso, lá somos chamados
a ser pessoas-cântaro para dar de beber aos outros. Às vezes o cântaro transforma-se
numa pesada cruz, mas foi precisamente na Cruz que o Senhor, trespassado, Se nos entregou
como fonte de água viva. Não deixemos que nos roubem a esperança!
Sim às relações
novas geradas por Jesus Cristo
87. Neste tempo em que as redes e demais instrumentos
da comunicação humana alcançaram progressos inauditos, sentimos o desafio de descobrir
e transmitir a «mística» de viver juntos, misturar-nos, encontrar-nos, dar o braço,
apoiar-nos, participar nesta maré um pouco caótica que pode transformar-se numa verdadeira
experiência de fraternidade, numa caravana solidária, numa peregrinação sagrada. Assim,
as maiores possibilidades de comunicação traduzir-se-ão em novas oportunidades de
encontro e solidariedade entre todos. Como seria bom, salutar, libertador, esperançoso,
se pudéssemos trilhar este caminho! Sair de si mesmo para se unir aos outros faz bem.
Fechar-se em si mesmo é provar o veneno amargo da imanência, e a humanidade perderá
com cada opção egoísta que fizermos.
88. O ideal cristão convidará sempre a
superar a suspeita, a desconfiança permanente, o medo de sermos invadidos, as atitudes
defensivas que nos impõe o mundo actual. Muitos tentam escapar dos outros fechando-se
na sua privacidade confortável ou no círculo reduzido dos mais íntimos, e renunciam
ao realismo da dimensão social do Evangelho. Porque, assim como alguns quiseram um
Cristo puramente espiritual, sem carne nem cruz, também se pretendem relações interpessoais
mediadas apenas por sofisticados aparatos, por ecrãs e sistemas que se podem acender
e apagar à vontade. Entretanto o Evangelho convida-nos sempre a abraçar o risco do
encontro com o rosto do outro, com a sua presença física que interpela, com o seu
sofrimentos e suas reivindicações, com a sua alegria contagiosa permanecendo lado
a lado. A verdadeira fé no Filho de Deus feito carne é inseparável do dom de si mesmo,
da pertença à comunidade, do serviço, da reconciliação com a carne dos outros. Na
sua encarnação, o Filho de Deus convidou-nos à revolução da ternura.
89. O
isolamento, que é uma concretização do imanentismo, pode exprimir-se numa falsa autonomia
que exclui Deus, mas pode também encontrar na religião uma forma de consumismo espiritual
à medida do próprio individualismo doentio. O regresso ao sagrado e a busca espiritual,
que caracterizam a nossa época. são fenómenos ambíguos. Mais do que o ateísmo, o desafio
que hoje se nos apresenta é responder adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas,
para que não tenham de ir apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo
sem carne e sem compromisso com o outro. Se não encontram na Igreja uma espiritualidade
que os cure, liberte, encha de vida e de paz, ao mesmo tempo que os chame à comunhão
solidária e à fecundidade missionária, acabarão enganados por propostas que não humanizam
nem dão glória a Deus.
90. As formas próprias da religiosidade popular são
encarnadas, porque brotaram da encarnação da fé cristã numa cultura popular. Por isso
mesmo, incluem uma relação pessoal, não com energias harmonizadoras, mas com Deus,
Jesus Cristo, Maria, um Santo. Têm carne, têm rostos. Estão aptas para alimentar potencialidades
relacionais e não tanto fugas individualistas. Noutros sectores da nossa sociedade,
cresce o apreço por várias formas de «espiritualidade do bem-estar» sem comunidade,
por uma «teologia da prosperidade» sem compromissos fraternos ou por experiências
subjectivas sem rostos, que se reduzem a uma busca interior imanentista.
91. Um
desafio importante é mostrar que a solução nunca consistirá em escapar de uma relação
pessoal e comprometida com Deus, que ao mesmo tempo nos comprometa com os outros.
Isto é o que se verifica hoje quando os crentes procuram esconder-se e livrar-se dos
outros, e quando subtilmente escapam de um lugar para outro ou de uma tarefa para
outra, sem criar vínculos profundos e estáveis: «A imaginação e mudança de lugares
enganou a muitos». É um remédio falso que faz adoecer o coração e, às vezes, o corpo.
Faz falta ajudar a reconhecer que o único caminho é aprender a encontrar os demais
com a atitude adequada, que é valorizá-los e aceitá-los como companheiros de estrada,
sem resistências interiores. Melhor ainda, trata-se de aprender a descobrir Jesus
no rosto dos outros, na sua voz, nas suas reivindicações; e aprender também a sofrer,
num abraço com Jesus crucificado, quando recebemos agressões injustas ou ingratidões,
sem nos cansarmos jamais de optar pela fraternidade.
92. Nisto está a verdadeira
cura: de facto, o modo de nos relacionarmos com os outros que, em vez de nos adoecer,
nos cura é uma fraternidade mística, contemplativa, que sabe ver a grandeza sagrada
do próximo, que sabe descobrir Deus em cada ser humano, que sabe tolerar as moléstias
da convivência agarrando-se ao amor de Deus, que sabe abrir o coração ao amor divino
para procurar a felicidade dos outros como a procura o seu Pai bom. Precisamente nesta
época, inclusive onde são um «pequenino rebanho» (Lc 12, 32), os discípulos do Senhor
são chamados a viver como comunidade que seja sal da terra e luz do mundo (cf. Mt
5, 13-16). São chamados a testemunhar, de forma sempre nova, uma pertença evangelizadora.
Não deixemos que nos roubem a comunidade!
Não ao mundanismo espiritual
93. O
mundanismo espiritual, que se esconde por detrás de aparências de religiosidade e
até mesmo de amor à Igreja, é buscar, em vez da glória do Senhor, a glória humana
e o bem-estar pessoal. É aquilo que o Senhor censurava aos fariseus: «Como vos é possível
acreditar, se andais à procura da glória uns dos outros, e não procurais a glória
que vem do Deus único?» (Jo 5, 44). É uma maneira subtil de procurar «os próprios
interesses, não os interesses de Jesus Cristo» (Fl 2, 21). Reveste-se de muitas formas,
de acordo com o tipo de pessoas e situações em que penetra. Por cultivar o cuidado
da aparência, nem sempre suscita pecados de domínio público, pelo que externamente
tudo parece correcto. Mas, se invadisse a Igreja, «seria infinitamente mais desastroso
do que qualquer outro mundanismo meramente moral».
94. Este mundanismo pode
alimentar-se sobretudo de duas maneiras profundamente relacionadas. Uma delas é o
fascínio do gnosticismo, uma fé fechada no subjectivismo, onde apenas interessa uma
determinada experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos que supostamente
confortam e iluminam, mas, em última instância, a pessoa fica enclausurada na imanência
da sua própria razão ou dos seus sentimentos. A outra maneira é o neopelagianismo
auto-referencial e prometeuco de quem, no fundo, só confia nas suas próprias forças
e se sente superior aos outros por cumprir determinadas normas ou por ser irredutivelmente
fiel a um certo estilo católico próprio do passado. É uma suposta segurança doutrinal
ou disciplinar que dá lugar a um elitismo narcisista e autoritário, onde, em vez de
evangelizar, se analisam e classificam os demais e, em vez de facilitar o acesso à
graça, consomem-se as energias a controlar. Em ambos os casos, nem Jesus Cristo nem
os outros interessam verdadeiramente. São manifestações dum imanentismo antropocêntrico.
Não é possível imaginar que, destas formas desvirtuadas do cristianismo, possa brotar
um autêntico dinamismo evangelizador.
95. Este obscuro mundanismo manifesta-se
em muitas atitudes, aparentemente opostas mas com a mesma pretensão de «dominar o
espaço da Igreja». Nalguns, há um cuidado exibicionista da liturgia, da doutrina e
do prestígio da Igreja, mas não se preocupam que o Evangelho adquira uma real inserção
no povo fiel de Deus e nas necessidades concretas da história. Assim, a vida da Igreja
transforma-se numa peça de museu ou numa possessão de poucos. Noutros, o próprio mundanismo
espiritual esconde-se por detrás do fascínio de poder mostrar conquistas sociais e
políticas, ou numa vanglória ligada à gestão de assuntos práticos, ou numa atracção
pelas dinâmicas de auto-estima e de realização auto-referencial. Também se pode traduzir
em várias formas de se apresentar a si mesmo envolvido numa densa vida social cheia
de viagens, reuniões, jantares, recepções. Ou então desdobra-se num funcionalismo
empresarial, carregado de estatísticas, planificações e avaliações, onde o principal
beneficiário não é o povo de Deus mas a Igreja como organização. Em qualquer um dos
casos, não traz o selo de Cristo encarnado, crucificado e ressuscitado, encerra-se
em grupos de elite, não sai realmente à procura dos que andam perdidos nem das imensas
multidões sedentas de Cristo. Já não há ardor evangélico, mas o gozo espúrio duma
autocomplacência egocêntrica.
96. Neste contexto, alimenta-se a vanglória de
quantos se contentam com ter algum poder e preferem ser generais de exércitos derrotados
antes que simples soldados dum batalhão que continua a lutar. Quantas vezes sonhamos
planos apostólicos expansionistas, meticulosos e bem traçados, típicos de generais
derrotados! Assim negamos a nossa história de Igreja, que é gloriosa por ser história
de sacrifícios, de esperança, de luta diária, de vida gasta no serviço, de constância
no trabalho fadigoso, porque todo o trabalho é «suor do nosso rosto». Em vez disso,
entretemo-nos vaidosos a falar sobre «o que se deveria fazer» – o pecado do «deveriaqueísmo»
– como mestres espirituais e peritos de pastoral que dão instruções ficando de fora.
Cultivamos a nossa imaginação sem limites e perdemos o contacto com a dolorosa realidade
do nosso povo fiel.
97. Quem caiu neste mundanismo olha de cima e de longe,
rejeita a profecia dos irmãos, desqualifica quem o questiona, faz ressaltar constantemente
os erros alheios e vive obcecado pela aparência. Circunscreveu os pontos de referência
do coração ao horizonte fechado da sua imanência e dos seus interesses e, consequentemente,
não aprende com os seus pecados nem está verdadeiramente aberto ao perdão. É uma tremenda
corrupção, com aparências de bem. Devemos evitá-lo, pondo a Igreja em movimento de
saída de si mesma, de missão centrada em Jesus Cristo, de entrega aos pobres. Deus
nos livre de uma Igreja mundana sob vestes espirituais ou pastorais! Este mundanismo
asfixiante cura-se saboreando o ar puro do Espírito Santo, que nos liberta de estarmos
centrados em nós mesmos, escondidos numa aparência religiosa vazia de Deus. Não deixemos
que nos roubem o Evangelho!
Não à guerra entre nós
98. Dentro do povo
de Deus e nas diferentes comunidades, quantas guerras! No bairro, no local de trabalho,
quantas guerras por invejas e ciúmes, mesmo entre cristãos! O mundanismo espiritual
leva alguns cristãos a estar em guerra com outros cristãos que se interpõem na sua
busca pelo poder, prestígio, prazer ou segurança económica. Além disso, alguns deixam
de viver uma adesão cordial à Igreja por alimentar um espírito de contenda. Mais do
que pertencer à Igreja inteira, com a sua rica diversidade, pertencem a este ou àquele
grupo que se sente diferente ou especial.
99. O mundo está dilacerado pelas
guerras e a violência, ou ferido por um generalizado individualismo que divide os
seres humanos e põe-nos uns contra os outros visando o próprio bem-estar. Em vários
países, ressurgem conflitos e antigas divisões que se pensavam em parte superados.
Aos cristãos de todas as comunidades do mundo, quero pedir-lhes de modo especial um
testemunho de comunhão fraterna, que se torne fascinante e resplandecente. Que todos
possam admirar como vos preocupais uns pelos outros, como mutuamente vos encorajais
animais e ajudais: «Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos
amardes uns aos outros» (Jo 13, 35). Foi o que Jesus, com uma intensa oração, Jesus
pediu ao Pai: «Que todos sejam um só (…) em nós [para que] o mundo creia» (Jo 17,
21). Cuidado com a tentação da inveja! Estamos no mesmo barco e vamos para o mesmo
porto! Peçamos a graça de nos alegrarmos com os frutos alheios, que são de todos.
100. Para
quantos estão feridos por antigas divisões, resulta difícil aceitar que os exortemos
ao perdão e à reconciliação, porque pensam que ignoramos a sua dor ou pretendemos
fazer-lhes perder a memória e os ideais. Mas, se virem o testemunho de comunidades
autenticamente fraternas e reconciliadas, isso é sempre uma luz que atrai. Por isso
me dói muito comprovar como nalgumas comunidades cristãs, e mesmo entre pessoas consagradas,
se dá espaço a várias formas de ódio, divisão, calúnia, difamação, vingança, ciúme,
a desejos de impor as próprias ideias a todo o custo, e até perseguições que parecem
uma implacável caça às bruxas. Quem queremos evangelizar com estes comportamentos?
101. Peçamos ao Senhor que nos faça compreender a lei do amor. Que bom é termos
esta lei! Como nos faz bem, apesar de tudo amar-nos uns aos outros! Sim, apesar de
tudo! A cada um de nós é dirigida a exortação de Paulo: «Não te deixes vencer pelo
mal, mas vence o mal com o bem» (Rm 12, 21). E ainda: «Não nos cansemos de fazer o
bem» (Gal 6, 9). Todos nós provamos simpatias e antipatias, e talvez neste momento
estejamos chateados com alguém. Pelo menos digamos ao Senhor: «Senhor, estou chateado
com este, com aquela. Peço-Vos por ele e por ela». Rezar pela pessoa com quem estamos
irritados é um belo passo rumo ao amor, e é um acto de evangelização. Façamo-lo hoje
mesmo. Não deixemos que nos roubem o ideal do amor fraterno!
Outros desafios
eclesiais
102. A imensa maioria do povo de Deus é constituída por leigos. Ao
seu serviço, está uma minoria: os ministros ordenados. Cresceu a consciência da identidade
e da missão dos leigos na Igreja. Embora não suficiente, pode-se contar com um numeroso
laicado, dotado de um arreigado sentido de comunidade e uma grande fidelidade ao compromisso
da caridade, da catequese, da celebração da fé. Mas, a tomada de consciência desta
responsabilidade laical que nasce do Baptismo e da Confirmação não se manifesta de
igual modo em toda a parte; nalguns casos, porque não se formaram para assumir responsabilidades
importantes, noutros por não encontrar espaço nas suas Igrejas particulares para poderem
exprimir-se e agir por causa dum excessivo clericalismo que os mantém à margem das
decisões. Apesar de se notar uma maior participação de muitos nos ministérios laicais,
este compromisso não se reflecte na penetração dos valores cristãos no mundo social,
político e económico; limita-se muitas vezes às tarefas no seio da Igreja, sem um
empenhamento real pela aplicação do Evangelho na transformação da sociedade. A formação
dos leigos e a evangelização das categorias profissionais e intelectuais constituem
um importante desafio pastoral.
103. A Igreja reconhece a indispensável contribuição
da mulher na sociedade, com uma sensibilidade, uma intuição e certas capacidades peculiares,
que habitualmente são mais próprias das mulheres que dos homens. Por exemplo, a especial
solicitude feminina pelos outros, que se exprime de modo particular, mas não exclusivamente,
na maternidade. Vejo, com prazer, como muitas mulheres partilham responsabilidades
pastorais juntamente com os sacerdotes, contribuem para o acompanhamento de pessoas,
famílias ou grupos e prestam novas contribuições para a reflexão teológica. Mas ainda
é preciso ampliar os espaços para uma presença feminina mais incisiva na Igreja. Porque
«o génio feminino é necessário em todas as expressões da vida social; por isso deve
ser garantida a presença das mulheres também no âmbito do trabalho» e nos vários lugares
onde se tomam as decisões importantes, tanto na Igreja como nas estruturas sociais.
104. As
reivindicações dos legítimos direitos das mulheres, a partir da firme convicção de
que homens e mulheres têm a mesma dignidade, colocam à Igreja questões profundas que
a desafiam e não se podem iludir superficialmente. O sacerdócio reservado aos homens,
como sinal de Cristo Esposo que Se entrega na Eucaristia, é uma questão que não se
põe em discussão, mas pode tornar-se particularmente controversa se se identifica
demasiado a potestade sacramental com o poder. Não se esqueça que, quando falamos
da potestade sacerdotal, «estamos na esfera da função e não na da dignidade e da santidade».
O sacerdócio ministerial é um dos meios que Jesus utiliza ao serviço do seu povo,
mas a grande dignidade vem do Baptismo, que é acessível a todos. A configuração do
sacerdote com Cristo Cabeça – isto é, como fonte principal da graça – não comporta
uma exaltação que o coloque por cima dos demais. Na Igreja, as funções «não dão justificação
à superioridade de uns sobre os outros». Com efeito, uma mulher, Maria, é mais importante
do que os Bispos. Mesmo quando a função do sacerdócio ministerial é considerada «hierárquica»,
há que ter bem presente que «se ordena integralmente à santidade dos membros do corpo
místico de Cristo». A sua pedra de fecho e o seu fulcro não são o poder entendido
como domínio, mas a potestade de administrar o sacramento da Eucaristia; daqui deriva
a sua autoridade, que é sempre um serviço ao povo. Aqui está um grande desafio para
os Pastores e para os teólogos, que poderiam ajudar a reconhecer melhor o que isto
implica no que se refere ao possível lugar das mulheres onde se tomam decisões importantes,
nos diferentes âmbitos da Igreja.
105. A pastoral juvenil, tal como estávamos
habituados a desenvolvê-la, sofreu o impacto das mudanças sociais. Nas estruturas
ordinárias, os jovens habitualmente não encontram respostas para as suas preocupações,
necessidades, problemas e feridas. A nós, adultos, custa-nos ouvi-los com paciência,
compreender as suas preocupações ou as suas reivindicações, e aprender a falar-lhes
na linguagem que eles entendem. Pela mesma razão, as propostas educacionais não produzem
os frutos esperados. A proliferação e o crescimento de associações e movimentos predominantemente
juvenis podem ser interpretados como uma acção do Espírito que abre caminhos novos
em sintonia com as suas expectativas e a busca de espiritualidade profunda e dum sentido
mais concreto de pertença. Todavia é necessário tornar mais estável a participação
destas agregações no âmbito da pastoral de conjunto da Igreja.
106. Embora
nem sempre seja fácil abordar os jovens, houve crescimento em dois aspectos: a consciência
de que toda a comunidade os evangeliza e educa, e a urgência de que eles tenham um
protagonismo maior. Deve-se reconhecer que, no actual contexto de crise do compromisso
e dos laços comunitários, são muitos os jovens que se solidarizam contra os males
do mundo, aderindo a várias formas de militância e voluntariado. Alguns participam
na vida da Igreja, integram grupos de serviço e diferentes iniciativas missionárias
nas suas próprias dioceses ou noutros lugares. Como é bom que os jovens sejam «caminheiros
da fé», felizes por levarem Jesus Cristo a cada esquina, a cada praça, a cada canto
da terra!
107. Em muitos lugares, há escassez de vocações ao sacerdócio e à
vida consagrada. Frequentemente isso fica-se a dever à falta de ardor apostólico contagioso
nas comunidades, pelo que estas não entusiasmam nem fascinam. Onde há vida, fervor,
paixão de levar Cristo aos outros, surgem vocações genuínas. Mesmo em paróquias onde
os sacerdotes não são muito disponíveis nem alegres, é a vida fraterna e fervorosa
da comunidade que desperta o desejo de se consagrar inteiramente a Deus e à evangelização,
especialmente se essa comunidade vivente reza insistentemente pelas vocações e tem
a coragem de propor aos seus jovens um caminho de especial consagração. Por outro
lado, apesar da escassez vocacional, hoje temos noção mais clara da necessidade de
melhor selecção dos candidatos ao sacerdócio. Não se podem encher os seminários com
qualquer tipo de motivações, e menos ainda se estas estão relacionadas com insegurança
afectiva, busca de formas de poder, glória humana ou bem-estar económico.
108. Como
já disse, não pretendi oferecer um diagnóstico completo, mas convido as comunidades
a completarem e a enriquecerem estas perspectivas a partir da consciência dos desafios
próprios e das comunidades vizinhas. Espero que, ao fazê-lo, tenham em conta que,
todas as vezes que intentamos ler os sinais dos tempos na realidade actual, é conveniente
ouvir os jovens e os idosos. Tanto uns como outros são a esperança dos povos. Os idosos
fornecem a memória e a sabedoria da experiência, que convida a não repetir tontamente
os mesmos erros do passado. Os jovens chamam-nos a despertar e a aumentar a esperança,
porque trazem consigo as novas tendências da humanidade e abrem-nos ao futuro, de
modo que não fiquemos encalhados na nostalgia de estruturas e costumes que já não
são fonte de vida no mundo actual.
109. Os desafios existem para ser superados.
Sejamos realistas, mas sem perder a alegria, a audácia e a dedicação cheia de esperança.
Não deixemos que nos roubem a força missionária!